Vida de Macrina: Santidade, virgindade e ascetismo feminino Adriana Zierer (UEMA) e Ricardo da Costa (Ufes) «Suas vidas eram exaltadas aos céus Gregório de Nissa, Vida de Macrina [972B] período em que Santa Macrina viveu (c. 325-380) foi marcado pela disputa entre diversas correntes de pensamento no cristianismo. Religião perseguida por vários imperadores romanos, especialmente por Diocleciano (284-305), o cristianismo foi aceito a partir de 313 (Edito de Milão), durante o reinado de Constantino (306-337). As grandes questões que ocupavam as almas de então eram a Criação, a natureza de Cristo e sua relação com o Pai e o Espírito Santo. Ou seja: o alicerce do cristianismo, a Santíssima Trindade. Em 325, no Concílio de Nicéia, convocado por Constantino, foram refutadas as idéias de Ário (c. 260-336), bispo de Alexandria, que afirmava que Deus e Cristo não possuíam a mesma substância (ousia): o Filho seria inferior ao Pai. Para Ário, apesar de ter sido criado antes do Tempo e ser superior ao resto da Criação, o Filho seria diferente do Pai em substância. Em Nicéia, os ensinamentos de Ário foram condenados e adotou-se o conceito de homousios (de substância idêntica) para estabelecer a relação entre Pai e Filho, assim descrito no Credo de Nicéia: Cremos num Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, E em nosso Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, O único concebido pelo Pai, ou seja, da substância do Pai Deus vindo de Deus, luz da luz, Concebido e não feito da mesma substância do Pai, Através do qual todas as coisas foram feitas, Assim no Céu como na Terra, Que por nós homens e por nossa salvação desceu e se fez homem, Sofreu, ressuscitou no terceiro dia, Subiu aos céus, de onde virá para julgar os vivos e os mortos. E cremos no Espírito Santo. (ARMSTRONG, 1994: 119-120) No entanto, não houve unanimidade em Nicéia e, após o concílio, os bispos continuaram pregando como antes. O arianismo continuou forte por mais sessenta anos, praticamente durante toda a vida de Macrina, o que torna a questão, além das perseguições imperiais aos cristãos do Oriente, um forte pano de fundo da redação da obra Vida de Macrina. Este artigo pretende abordar a questão da santidade e do ascetismo feminino e a importância da virgindade para o cristianismo do século IV, tomando como estudo de caso a obra Vida de Macrina, escrita nos anos 380-383 por seu irmão Gregório, bispo de Nissa (c. 371-395), na Capadócia, um dos principais opositores do arianismo — Gregório participou ativamente no Concílio de Constantinopla (381), convocado pelo imperador Teodósio I (379-395), onde foi reafirmada a consusbstancialidade entre Pai e Filho, confirmando o Credo de Nicéia. * * * Macrina era a filha mais velha de dez irmãos. Nasceu na Cesaréia, na Capadócia, outrora um reino independente e província do Império Romano a partir de 14 d.C. Situados em torno do rio Halys — fronteira natural entre a Ásia Menor romana e as regiões interioranas —, o arcebispado de Cesaréia formava, ao lado de Nissa (bispado), uma área fortemente cristianizada a partir de 325. Sua família pertencia a um segmento da aristocracia helenizada da Ásia Menor que prontamente aceitou o cristianismo (TEJA, 1989: 92). Os avós de Macrina haviam perdido suas propriedades por professarem o cristianismo devido à perseguição do imperador Diocleciano — todo este período no Oriente foi marcado por perseguições aos cristãos. Sua avó, Macrina, a Velha, também foi posteriormente considerada santa. Seus pais, São Basílio, o Idoso e Santa Emélia, também sofreram perseguições religiosas por parte do imperador Galério Máximo (293-311). Apesar de assinar um edito pouco antes de sua morte que garantia tolerância para com a Igreja cristã, Galério foi considerado um urso pelos escritores cristãos, como Eusébio e Lactância, por sua ferocidade contra a fé cristã (BOWDER, s/d: 125-126). A família de Macrina mudou-se para o Ponto (Pontus), província romana localizada ao norte da Capadócia. Tal como era exigido para um membro da aristocracia, a menina ficou noiva aos doze anos, mas a precoce morte do pretendente a fez recusar obstinadamente qualquer novo compromisso. Apesar de não ter consumado o casamento, Macrina considerava que já havia se casado e decidiu dedicar sua vida à virgindade e à busca da perfeição cristã. Como sinal indicativo de sua nova aliança, usava uma anel pendurado no pescoço que supostamente continha um fragmento da cruz na qual Cristo foi crucificado. Esta passagem é relevante por delimitar a sua escolha ascética e o anel foi encontrado por Vestiana, viúva de alta reputação que vivia no retiro, no momento em que se preparavam os funerais de Macrina. Ambos, Vestiana e Gregório consideraram o gesto de Macrina em usá-lo como uma grande forma de devoção: “Veja”, disse [Vestiana], “que tipo de ornamento está pendurado no pescoço da santa!” Enquanto falava, [Vestiana] afrouxou o fecho e depois esticou a mão dela e nos mostrou uma representação da cruz de ferro e um anel do mesmo material. Ambos estavam fechados por um fino fio e ficavam continuamente no coração.” “Deixe-nos dividir o tesouro”, eu disse. “Tu tens um estilete da cruz, ficarei contente em herdar o anel”— pois a cruz estava traçada no selo do anel também. Olhando para isso, a senhora me disse outra vez — Tu não erraste em escolher este tesouro, pois o anel é largo no aro e foi escondido num pedaço da Cruz da Vida. VM [990 D] A aspiração pela pureza religiosa no século IV era também perseguida pelos ascetas, os “renunciadores cristãos” que afastavam-se das cidades em direção ao deserto. Lá faziam celas escavadas nas depressões das dunas até atingirem água salobra. Pretendiam assim que suas habitações fossem túmulos, onde o religioso estaria “morto” para o mundo (BROWN, 1990: 186-187). Um dos principais objetivos destes ascetas era afastarem-se das mulheres e principalmente do desejo sexual. A vida do anacoreta era austera, centrando-se no trabalho manual, nas preces, jejuns e na meditação. A falta de comida era a maior privação enfrentada por eles, pois acreditavam que o maior erro no pecado original fora a gula, que teria levado Adão e Eva a transgredirem as ordens de Deus. Diminuindo a ingestão de comida, esses homens acreditavam estar purificando seus corpos das paixões e de sua contaminação, pois o cristão perfeito era aquele que podia estar totalmente exposto à toda a comunidade, não tendo vergonha de seus pensamentos ou sonhos. Daí ser tão importante para eles educar o corpo até que os desejos sexuais inconscientes — como a polução noturna — fossem eliminados (BROWN, 1990: 196-197). Algumas mulheres também experimentaram a religiosidade do deserto, como Alexandra, Maria, a Egípcia, Thaís, Sinclética e as irmãs Menodora e Metrodona. O principal traço das “mães do deserto” era a adoção de trajes masculinos. Na maior parte dos casos sua motivação para a fuga do mundo ocorrera devido a um impedimento no casamento ou por terem tido uma vida que considerassem pecaminosa. Após a morte dessas mulheres sua santidade foi muitas vezes reconhecida e testemunhada em vitae escritas por homens (KING, s/d: Internet). O caminho de Macrina, porém, é distinto dos ascetas femininos e masculinos do deserto. Ela está ligada à fundação do monasticismo no Oriente, apesar de ter ficado obscurecida pela figura de seus irmãos. Este é o período das origens do monacato primitivo (TEJA, 1989: 82). Três deles são considerados pais da Igreja, por terem agido como defensores do cristianismo niceno contra o arianismo: Basílio de Cesaréia (c. 330-379), Gregório de Nissa e Pedro de Sebasta. Todos se tornaram bispos, sendo também conhecidos como os pais da Capadócia. Além deles, Naucratius, outro irmão de Macrina, tornou-se ermitão, dedicando sua vida a auxiliar os pobres. Acabou morrendo tragicamente numa expedição de caça ainda bem jovem. A ela, Gregório dedicou a obra Vida de Macrina, escrita em grego pouco depois da morte da irmã, entre 380 e 383. Nela explicou o papel preponderante que a irmã teve na vida dos irmãos e relatou a trajetória de Macrina rumo à santidade. Foi redigida em forma de carta e dedicada ao monge Olímpio, que o acompanhou no Concílio de Constantinopla em 381. Após a morte do pai em 340, ano também do nascimento do caçula Pedro, Macrina, com apenas quinze anos, decidiu nunca afastar-se da mãe. Mais tarde, em 352 ambas retiraram-se para uma propriedade da família em Anési, próximo ao rio Íris, no Ponto, e lá formaram um convento com antigas servas, próximo do convento de seu irmão Basílio. Outras propriedades foram vendidas para auxiliar os pobres, e mãe e filha passaram a viver sem luxos, realizando trabalhos manuais e domésticos, seguindo o exemplo do desprezo das riquezas tão característico dos valores ascéticos de então (BLAZQUEZ, 1989: 108): Macrina persuadiu sua mãe a desistir da vida comum e todo o estilo de vida ostentoso e os serviços domésticos aos quais ela estava acostumada antes, (...) e partilhou a vida das servas, tratando todas as suas escravas e criados como se eles fossem irmãos e pertencessem à mesma condição social que ela. VM [966D] Levavam uma vida de estrito ascetismo, dedicando-se à meditação sobre as verdades do cristianismo e às orações. Era uma organização de tipo familiar que se prestava costumeiramente a auxiliar os pobres. Este claustro feminino deveria ser um espaço inviolável, longe do espaço profano público, associado ao paganismo (BROWN, 1990: 232). O convento era considerado essencial para as virgens absorverem a cultura sagrada: através dele as mulheres poderiam ser alfabetizadas. Não só os irmãos de Macrina, mas também amigos da família como Gregório Nazianzeno e Eustáquio de Sebasta estiveram ligados a esta comunidade e foram estimulados a fazer maiores avanços em direção à perfeição cristã. No contexto da espiritualidade cristã do século IV, Macrina teve papel preponderante. As virgens eram vistas como “único ser humano que permanecido tal como originalmente criado (...) como um deserto em si.” (BROWN, 1990: 226). O fato de realizar uma vida inteira sem contato com o outro sexo e basear seu conhecimento unicamente nas Escrituras fazia Macrina e outras virgens serem consideradas verdadeiros esteios do cristianismo. Ao contrário dos homens, como os próprios irmãos de Macrina, ligados ainda à cultura pagã e às disputas pelo poder nas cidades (contra os arianos, por exemplo), as virgens, para os bispos, mantinham a pureza original do pensamento cristão. Utilizava-se então literariamente a metáfora do espelho para tratar desta contemplação interior, do “olhar para dentro”, do ato de mirar seu reflexo íntimo, vislumbrar contemplativamente a materialização de sua alma, sempre com o intermédio das Escrituras. Segundo os bispos, as virgens teriam então um papel fundamental nesta atitude (COSTA, 2000: 79). Esta era uma preocupação dos escritores da época: João Crisóstomo (398-404), bispo de Constantinopla, fez uma série de pregações que deram origem ao tratado Sobre a Virgindade (382), onde demostrava a alegria de pertencer a uma raça humana que se encontrava no limiar de uma nova era (BROWN, 1990: 278). Por sua vez, em sua obra Da Virgindade, Gregório de Nissa afirmava que ...como um espelho, quando é bem feito recebe em sua superfície polida os traços daquele que lhe é apresentado, assim também a alma, purificada de todas as manchas terrestres, recebe em sua pureza a imagem da beleza incorruptível. (CHEVALIER, 1995: 393). Platônico seguidor da escola que Orígenes (c. 185-254) fundara em Cesaréia, Gregório acreditava que para qualquer método ser eficaz deveria ser como um espelho, como uma virgem, espécie de corpo-espelho onde as pessoas poderiam ter um vislumbre da pureza, da imagem de Deus. Segundo ele, uma virgem era um espelho da alma e uma imagem física do Jardim do Éden, também terra virgem (BROWN, 1990: p. 249). Pelo fato de não se casarem e não se tornarem mães, as virgens ascetas eram consideradas próximas de Deus e de Adão, semelhantes à humanidade antes do pecado original e vistas como noivas de Cristo, tendo assim acesso irrestrito ao conhecimento — daí a possibilidade de, através do ascetismo, terem acesso à alfabetização. Por exemplo, Macrina possuía uma excelente bagagem intelectual: sua mãe a ensinara a ler usando as Escrituras e ela conhecia autores cristãos, como Orígenes, além de ler as obras dos irmãos (CORRIGAN, s/d: Internet). Seu apelido era Tecla, a companheira imaginária de São Paulo e ligada a Sócrates, o que associava Macrina à figura da mulher sábia (ALEXANDRE, s/d: 535), porque asceta, porque virgem. De acordo com Gregório, o apelido secreto da irmã veio durante um sonho da mãe, Emélia, antes do parto: E alguém com forma e brilho mais esplêndido que um ser humano apareceu (a Emélia) e dirigiu-se à criança que ela estava carregando pelo nome de Thecla, aquela Thecla, eu quero dizer, que é tão famosa entre as virgens. Depois de fazer isto e testemunhar isso três vezes, ele partiu da sua vista e deu a ela um parto fácil, de maneira que, naquele momento, acordou do sono e viu seu sonho realizado. Agora, esse nome era usado apenas em segredo. Mas parece-me que a aparição não fala tanto para guiar a mãe para a escolha certa do nome, mas para prever a vida da jovem criança e para indicar pelo nome que ela deveria seguir o modo de vida do nome. VM [962 C] O sonho de Emélia é bastante revelador da forma com a qual os homens da época imaginavam o contato com Deus — não nos esqueçamos que todas as informações a respeito de Macrina são sempre mediatizadas por seu irmão Gregório, que justifica o fato de escrever a vida de uma mulher: Nesse caso, foi uma mulher que nos forneceu o nosso assunto; se, de fato, ela devia ser uma mulher de estilo, eu não sei se é conveniente designá-la pelo seu sexo, a quem ultrapassou tanto o seu sexo. VM [960 B] Podemos observar sim as mulheres deste período, mas sempre filtradas pelos olhares masculinos. No caso de Gregório, a decisão de redigir a vida da irmã santa vem acompanhada da aprovação de outro homem, o monge Olímpio, a quem ele dedica a obra e a quem atribui também ter lhe dado a incumbência de escrever o relato: Então, tu decidiste que a história de sua nobre carreira vale a pena ser contada para evitar que tal vida seja desconhecida no nosso tempo, e que o registro de uma mulher que cresceu pela filosofia para a maior elevação da virtude humana não deve passar pelas sombras do esquecimento inútil; eu acho por bem obedecer a ti. VM [960 C] Este é um tipo de problema de análise de fontes muito comum para a documentação da época. Eles dizem o que elas são e principalmente o que devem ser (DUBY, s/d: 9). O mesmo tipo de problema acontece no caso de Santa Mônica (c. 331-387), “viva” para a História por seu filho Agostinho (COSTA, 1995). De qualquer modo, é importante que se entenda o sonho cristão do século IV como um objeto onírico de transmissão do logos divino, pois este foi o período da formação — na teoria e na prática — de um tipo especial de imaginário, a onirologia cristã (LE GOFF, 1994: 283). Já vimos que no século IV o cristianismo ainda estava numa fase de formação de seus dogmas, e o sonho exerceu um papel preponderante na construção do imaginário cristão (LE GOFF, 1994: 329). A hagiografia do período tem o sonho como ponto convergente da vida da maior parte dos santos, e o sonho da mãe de Macrina é o de um tipo muito especial, mesmo excepcional, pois é o que vem diretamente de Deus. Macrina pôde realizar as aspirações que sua mãe tivera quando jovem. Emélia teria preferido ficar solteira. Ambas tiveram um relacionamento de muita afetuosidade. De acordo com Gregório, a sensação da mãe foi como se sempre tivesse carregado a filha em seu ventre: o tempo estaria imóvel, sinal indicador da santidade vindoura, onde o passado, presente e futuro estavam juntos e pareciam coexistir no útero da mãe (GUREVITCH, 1990: 122). Um dos desejos de Macrina era que após sua morte ela fosse colocada na tumba ao lado da mãe para que seus corpos ficassem mesclados um com o outro (...) e que seu companheirismo em vida não fosse quebrado na morte” (VM [996 B]). É importante ressaltar o papel de Macrina e de outras virgens na elaboração de retiros para onde afluíam moças pobres e também viúvas abastadas que decidiam ingressar na vida religiosa. É por exemplo o caso de Vestiana: uma senhora de nascimento nobre, que tinha sido famosa na juventude pela riqueza, boa família, beleza física e todas as outras distinções. Ela havia se casado com um homem de alta posição e vivido com ele um curto período. VM [988C] De acordo com Peter Brown, as organizações femininas como as de Macrina baseavam-se em laços de amizade e contavam com grandes grupos de virgens, de cinqüenta a cem, e seu alto contingente era ocasionado também por manterem no convento senhoras ricas que dedicavam seus recursos ao convento e também viviam ali (BROWN: 1990, p. 222). Para Macrina ser considerada santa, dois motivos podem ser destacados. O seu papel de virgem, conforme já demostramos, e sua vida ascética. Mas também devido a seus milagres, dois deles relatados com detalhes por seu irmão: a cura produzida por Deus na própria santa e a cura de uma criança por Macrina. Na história do primeiro milagre, Macrina sofria de um tumor no peito, fato que muito preocupava sua mãe, principalmente de a filha recusar-se a ser tratada por um médico. Então Macrina dirigiu-se a Deus e pediu-lhe a cura, o que foi concedido: Então, quando a noite chegou, depois de cuidar de sua mãe como sempre, ela foi para o santuário e suplicou por toda a noite a Deus a cura. Uma torrente de lágrimas caiu de seus olhos no chão, e ela utilizou a lama feita de suas lágrimas como um remédio para sua doença. Quando sua mãe sentiu-se desanimada e outra vez insistiu que ela permitisse que o médico viesse, ela disse que seria suficiente para a cura de sua doença se sua mãe fizesse o sinal sagrado no local com sua própria mão. Mas quando a mãe colocou sua mão em seu seio para fazer o sinal da cruz, o sinal agiu e o tumor desapareceu. VM [992B] No lugar do tumor ficou apenas uma pequena marca, símbolo do milagre divino que Vestiana, a viúva a quem já nos referimos, mostrou a Gregório momentos antes do sepultamento de Macrina: “Vês”, ela disse, “esta pequena marca apagada abaixo do pescoço? Era como uma cicatriz feita por uma pequena agulha. Enquanto falava, ela trouxe a lâmpada próximo do local que estava me mostrando. “O que surpreende”, eu falei, “como se o corpo tivesse sido marcado com algum sinal fraco neste lugar”. “Isso”, ela replicou, “foi deixado no corpo como uma prova da poderosa ajuda de Deus. (...) “Mas isto”, ela disse, “é um minúsculo traço da marca; apareceu no local da terrível chaga e permaneceu até o final o que poderia ser, como imagino, uma memória da visita divina, uma ocasião e lembrança da perpétua ação da graça de Deus.” VM [992 A] e [992C] O outro milagre foi a cura de uma menina, que possuía uma doença num dos olhos, fato que seu pai contou a Gregório. De acordo com o pai, “sua aparência [da menina] era repulsiva e causava pena, a membrana em volta do olho era mais larga e embranquecida pela doença” (VM [996 D]). Ao visitar o retiro, ele tinha ficado na ala masculina, junto com Pedro de Sebasta, irmão de Macrina, e sua mulher e filha, na companhia de Macrina e suas companheiras: Quando entramos naquele domicílio divino, minha mulher e eu nos separamos, visitamos aqueles buscadores de filosofia de acordo com nosso sexo. Fui para a ala dos homens, presidida por Pedro, seu irmão, enquanto minha esposa foi para a ala feminina e conversou com a santa. VM [996 D] Porém, no momento em que preparavam-se para partir, tanto Macrina quanto o irmão protestaram e a ela fez uma promessa a mãe da criança, caso permanecesse mais um pouco: Seu irmão [Pedro] estava insistindo para que eu ficasse e compartilhasse a mesa dos filósofos, e a santa senhora não queria deixar que minha mulher se fosse antes que preparasse uma refeição para elas e as entretivesse com as riquezas da filosofia. E beijando a criança, como era natural, e colocando seus lábios nos olhos dela, ela viu a enfermidade da pequena e disse — “se me concederes o favor de dividir a nossa refeição, darei a ti em troca uma recompensa não imerecida por tal honra.” “O que é?”, disse a mãe da criança. “Eu tenho um remédio”, disse a grande senhora, “que é poderoso para curar doenças nos olhos.” VM [998 A] Os pais da menina, então, permaneceram no retiro por mais tempo e depois da refeição partiram. No meio da viagem, aflita, a senhora lembrou-se de ter esquecido de pedir a medicação à Macrina, e o marido já pensava em mandar alguém voltar quando a mãe percebeu que o milagre já havia sido efetuado: Eu estava envergonhado pelo descuido [de esquecer a medicação] e pedi que alguém voltasse depressa para buscá-la. Assim que foi feito, a criança, que estava nas mãos da ama, olhou para a mãe e a mãe olhou nos olhos da criança. “Parem”, disse, envergonhada pela desatenção, gritando com alegria e medo. “Vejam!” “Nada do que foi prometido está faltando! Ela realmente deu à menina o verdadeiro remédio que cura a doença; é a cura que vem da oração. Já deu ambos e ele já provou a sua eficácia; nada da doença ficou nos olhos. Tudo foi purificado pelo remédio divino.” VM [998 C e D] E, de acordo com as suas palavras a Gregório, o pai da criança havia entendido os desígnios de Deus: O que pode surpreender na recuperação da visão dos cegos pelas mãos de Deus, quando Suas criaturas, executando essas curas pela fé Nele, realizaram algo não inferior a aqueles milagres? Tal foi a história dele; foi interrompida por soluços, e lágrimas engasgaram o que proferiu. Tanto pelo militar [o pai] como para a sua história.” VM [998 D] Estes são os milagres mais importantes realizados por Macrina descritos por Gregório, mas ele cita outros em sua conclusão do relato, que segundo afirma, não explicará com maiores detalhes, pois segundo sua opinião poderiam exceder a compreensão de muitos: Muitos homens julgam o que é crível numa história pela medida da sua própria experiência. Mas o que excede a capacidade do ouvinte, os homens recebem com insulto e suspeita de falsidade, (como algo) muito remoto da realidade. Consequentemente, omito aquela extraordinária ação agrícola na época da fome, (do modo) como o milho para aliviar as necessidades, embora distribuído constantemente, não sofreu nenhuma diminuição perceptível, permanecendo sempre em quantidade o mesmo que era antes de ser distribuído às necessidades dos suplicantes. E depois disso, houve acontecimentos ainda mais surpreendentes, os quais eu poderia contar. Curas de doenças, expulsões de demônios e previsões verdadeiras sobre o futuro. Acredita-se que todos sejam reais, mesmo que aparentemente inacreditáveis, por aqueles que os investigaram com acuidade. Mas pela mente carnal são julgados fora do possível. (os grifos são nossos) VM [1000 A]. Que importância teve esta santa na vida dos irmãos, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Pedro de Sebasta? Em a Vida de Macrina, Gregório elogia a sabedoria da irmã e seu papel de condutora da família. De Pedro, o caçula, menciona que ela exerceu papel fundamental na sua formação, após a morte do pai: Assim, tendo sido todas as coisas para o jovem — pai, professora, tutora, mãe, doadora de todos os bons conselhos — ela produziu tais resultados que, antes que a idade da puerícia tivesse passado, quando ele ainda estava despindo o primeiro florescimento da tenra juventude, aspirou à alta marca da filosofia. [972C] Ao atingir a idade adulta, Pedro de Sebasta passou a dividir o retiro de Anési com Macrina. Em cada uma das margens do rio Íris localizava-se uma comunidade. A das mulheres era chefiada por Macrina desde a morte da mãe, e a dos homens chefiada inicialmente por Basílio e depois de sua morte, por seu irmão Pedro. Com relação a Gregório de Nissa, o escritor de sua biografia, Macrina deu-lhe alento para preservar suas crenças. Devido às disputas contra o arianismo, Gregório foi deposto do cargo de bispo e banido de Nissa em 376, tendo reassumido suas funções com a morte do imperador Valenciano. Ao queixar-se com a irmã de suas penas, foi estimulado por ela a ser forte e dar graças a Deus pelo que já havia recebido: Tu não cessarás de ser insensível às bênçãos divinas? Não remediarás a ingratidão da tua alma? Não compararás a tua posição com aquela dos nossos pais? E ainda, com relação às coisas do mundo, nós pudemos gabar-nos de sermos bem nascidos e pensar que viemos de uma família nobre. Nosso pai era muito estimado como jovem pelo seu conhecimento; de fato sua fama estabeleceu-se por todas as cortes de lei da província. Subseqüentemente, embora ele ultrapassasse a todos em retórica, sua reputação não se estendeu além de Pontus. Mas ele estava satisfeito em ter a fama em sua própria terra. No entanto tu, ela disse, é renomado em cidades, povos e países. Igrejas citam-te como um aliado e dirigente, e não vês a graça de Deus em tudo isso? VM [982 B]. Sobre Basílio, que havia estudado retórica em Atenas, Gregório diz que a irmã levou-o a desprezar o orgulho por seus conhecimentos e o conduziu a um caminho de humildade: O irmão de Macrina, o grande Basílio, retornou depois de seu longo período de educação, já um hábil retórico. Ele estava envaidecido além da medida com o orgulho da oratória e desprezava os dignitários locais, superando em sua própria avaliação todos os homens de liderança e posição. No entanto, Macrina o tomou pela mão, e com tal rapidez levou-o também em direção à marca da filosofia, que ele renunciou às glórias deste mundo e desprezou a fama ganha pelo discurso (...) Sua renúncia à propriedade foi completa, para que nada devesse impedir a vida de virtude. VM [966C]
Basílio, o Grande, ou São Basílio, o mais velho dos irmãos, foi mais tarde considerado doutor da Igreja. Visitou os ascetas na Síria, Egito e Palestina (GILSON, 1998: 63). É considerado o pai do monasticismo oriental e sua regra foi inspirada na que Macrina escreveu para o seu retiro em Anési. Fundou hospitais e dedicou-se a cuidar dos pobres, tendo como principal projeto a formação de fraternidades baseadas no auxílio mútuo e no voto de pobreza (BROWN, 1990: 243). Produziu vários escritos contra o arianismo, sendo creditada a ele a fórmula de Deus como sendo uma única essência [hypostasis] com três pessoas [hypostases]. Morreu nove meses antes de Macrina, em 379. Além de incitar a fé em seus irmãos, a importância de Macrina não é nada desprezível na história do cristianismo primitivo do século IV. Sua influência junto a seu irmão Basílio foi notável. Graças a ela, Basílio tornou-se eremita, fundou monastérios e traçou as regras que nortearam a vida monástica da Igreja Ortodoxa — Basílio representa o homem novo das elites dirigentes do Baixo Império: aristocrata e latifundiário apegado à vida urbana, amante da cultura grega e convicto de seu cristianismo, monge e bispo (TEJA, 1989: 94). Se levarmos em consideração o peso de suas palavras e gestos sobre seus irmãos, podemos ter uma idéia da influência de Macrina na construção do monaquismo cristão: São Bento inspirou-se em Basílio de Cesaréia para elaborar sua regra. De Macrina a São Bento, a história do monacato no mundo cristão foi assim moldada, com base no ascetismo rigoroso, na leitura das Escrituras e no papel das virgens como metáforas vivas do Paraíso Perdido. Através do relato sobre sua vida, também podemos observar a atuação de uma mulher como condutora intelectual de sua família. Como guia e protetora espiritual ela era a “mestra”, “minha senhora”. Uma mudança significativa do olhar masculino em relação a elas. Nascida no seio dos lares cristãos, pois acreditava-se que o dono da casa era o principal beneficiado com a devoção de sua virgem, a asceta era, por isso mesmo, um exemplo de comportamento, de pureza. Segundo Gregório, em sua obra Da Virgindade, as virgens mantinham uma relação de tempo contínuo com o Criador, e por isso Macrina se encontrava na “fronteira do mundo invisível”, que era interrompida pelos humanos que se dedicavam ao sexo. O modelo de Macrina ajudou a fortalecer uma idéia vigente então que as mulheres consagradas eram um depósito de valores para as comunidades cristãs. Eram as kanonikai — mulheres comprometidas com um cânon, uma vida regular e ascética cotidiana num pequeno grupo espiritual e orgânico que as destacava das outras fiéis. Nascia assim o ideal ascético cristão feminino. A curto prazo, o modelo de Macrina influenciou, por exemplo, a atitude ambivalente da sociedade patriarcal de Bizâncio em relação à mulher: entre Eva e Maria, entre o ideal ascético cristão da virgindade e do celibato, e a “promoção” do casamento (TALBOT, 1998: 118). Além de modelo da mulher santa, a vida de Macrina é também modelo original para as abadessas medievais. A longo prazo, o modelo ascético de Macrina fortaleceu o discurso do pólo positivo feminino cristão (ALEXANDRE, s/d: 511): a exaltação da virgem, com seu poder de doação, intrínseco a seu sexo, sua influência cristã no seio da família (2 Tim), e seu papel auxiliador na conversão das populações ao cristianismo. E é com esse último ponto, este último atributo feminino — a conversão — que terminamos este artigo. Uma passagem de uma carta de Basílio de Cesaréia aos habitantes de Neocesaréia, que mostra a força da imagem de Macrina, a força cristã feminina, na difusão do cristianismo do século IV: Que prova mais clara poderia haver em favor da nossa fé do que o facto de ter sido educado por uma avó que era uma bem-aventurada mulher saída do meio de vós? Falo-vos da ilustre Macrina, que nos ensinou as palavras do bem-aventurado Gregório (o Taumaturgo), todas as que a tradição oral lhe tinham conservado, que ela própria guardava e de que se servia para educar e para formar nos dogmas da piedade a criancinha que éramos ainda? (ALEXANDRE, s/d: 554) Além do ascetismo e da função mágica da virgem como um vislumbre da pureza de Deus, este era o principal papel feminino que os homens de então viam as mulheres: o alicerce transmissor da fé linhagística. Propagar a fé por meio de seu amor infinito, resguardado em sua virgindade eterna. Fonte: Vida de Macrina. (Trad. de Adriana Zierer, com base no texto estabelecido por W. K. Lowther Clarke na Internet Medieval Sourcebook). Bibliografia citada ALEXANDRE, Monique. “Do anúncio do Reino à Igreja. Papéis, ministérios, poderes femininos”. In: DUBY, Georges e PERROT; Michelle (dir.). História das Mulheres no Ocidente, Volume 1 – A Antiguidade (dir. De Pauline Schmitt Pantel). Lisboa: Edições Afrontamento/EBRADIL, s/d, p. 510-563. ARMSTRONG. Karen. Uma História de Deus. Quatro milênios de busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BLAZQUEZ, J. M. “El monacato de los siglos IV, V y VI como contracultura civil y religiosa”. In: HIDALGO DE LA VEGA, Maria José (ed.). La Historia en el contexto de las ciencias humanas y sociales. Homenaje a Marcelo Vigil Pascual. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1989, p. 97-121. BOWDER, Diana. Quem foi quem na Roma Antiga. São Paulo: Art Editora/Círculo do Livro, s/d. BROWN, Peter. “Antiguidade tardia”. 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