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Espírito e Liberdade
Nikolai Berdiaev
Nicolai Berdiaev, pensador religioso russo, nasceu em 1874 e morreu em 1948. Como alguns dos nobres de seu tempo, associou-se à causa revolucionária, no início do século, lutando contra a tirania czarista. Com a vitória da revolução soviética, Berdiaev foi nomeado professor de filo da Universidade de Moscou, mas foi exilado para Paris em 1922, diante da sua rebeldia em aceitar totalmente a doutrina marxista. Preocupou-se muito com a questão da liberdade individual. Escreveu "A Nova Idade Média", "Solidão e Sociedade" e "Escravidão e Liberdade", de onde foi adaptado este texto (capítulo II).
Capítulo I: Espírito e Natureza
ós perdemos toda a confiança na possibilidade e na fecundidade de uma metafísica abstrata. A
metafísica abstrata estava fundamentada sobre a substantificação dos fenômenos da vida
psíquica do homem, dos fenômenos do mundo material, ou ainda das categorias do pensamento,
vale dizer, do mundo das ideias. Assim se obtém o espiritualismo, o materialismo, o idealismo.
Mas o ser concreto, o ser enquanto vida, sempre escapou a esses ensinamentos metafísicos. As
partes abstratas da realidade ou as ideias abstratas sobre o sujeito conhecedor eram tomadas
como sendo a essência da realidade, sua plenitude. A abstração e a substantificação criaram uma
metafísica tanto espiritualista como materialista. A vida foi objetificada como se fosse a natureza
material ou espiritual. E a categoria essencial do conhecimento dessa natureza metafísica era a
categoria da substância. O ser é uma substância objetiva, espiritual ou material. Deus é concebido
como sendo a substância, o objeto, a natureza. A ideia é também uma substância. A metafísica,
em todas as suas tendências dominantes, era naturalista e substancialista. Ela compreendia a
realidade por analogia com a realidade dos objetos materiais. Deus e o espírito passam a ser uma
realidade da mesma ordem que o mundo material. À metafísica naturalista opôs-se o
fenomenismo, que reconhecia a existência do fenômeno, mas não a do noúmeno, uma metafísica
que negava a possibilidade de conhecer a vida original.
O idealismo alemão do século XIX desempenhou um papel preponderante na liberação de toda a
metafísica naturalista e marcou um progresso no conhecimento do espírito. Mas o idealismo de
Hegel erigiu em realidades substanciais as categorias do pensamento e, malgrado suas
pretensões, não atingiu a concretude no espírito. A metafísica panlogista[1] está também tão longe
da concretude do espírito quanto a metafísica naturalista. A substantificação do sujeito pensante
não atinge seu objetivo, tanto quanto a substantificação do objeto pensado. Falta a essência da
vida, tanto quando se erige em absoluto o conceito de sujeito, como quando se erige em absoluto
a natureza do objeto. Mas a metafísica do idealismo alemão é mais dinâmica do que a metafísica
naturalista da filosofia pré-Kantiana. Ela deve a isso seu sucesso incontestável. Esse dinamismo
tem suas raízes na liberação de toda concepção estática e substancialista da natureza material,
espiritual ou divina. O idealismo alemão, malgrado todas as falhas de seu monofisismo e de sua
abstração, colocou o problema da filosofia do espírito e da vida espiritual; por assim dizer, ele
aplainou-lhe o caminho. Ele compreendeu essa verdade: que a existência é ação e não
substância, movimento e não imobilidade, vida e não coisa. A metafísica naturalista, que tomou as
formas mais diversas, ensinava a opressão do “espírito” pela “natureza”, e ela certamente
influenciou poderosamente a consciência religiosa e os sistemas de teologia.
Os sistemas teológicos trazem em si a marca fatal da metafísica objetiva e materialista: eles dão
testemunho de um realismo ingênuo inerente à concepção naturalista do mundo, segundo a qual
Deus é um objeto, uma realidade objetiva, no mesmo nível das demais realidades da natureza.
Dessa forma, Deus é conhecido nas categorias da natureza, e não naquelas do espírito; a
realidade de Deus aparece como algo semelhante àquela das substâncias materiais. Mas Deus é
espírito, e espírito significa atividade. O espírito é liberdade. A natureza do espírito é oposta à
passividade e à necessidade; é por essa razão que o espírito não pode ser uma substância. A
concepção aristotélica de Deus, como ato puro, priva justamente a Deus de uma vida interior ativa,
e o transforma num objeto fixo. Já não existe potência em Deus, vale dizer, não há mais a fonte de
movimento e de vida. O tomismo houve por bem afirmar a diferença entre o “natural” e o
“sobrenatural”, encontrando-se assim sob o império da metafísica naturalista da divindade. O
“sobrenatural” é também um “natural”, apenas situado mais acima e que possui uma extensão
maior. A palavra “sobrenatural” se compõe de dois termos que em si mesmos não implicam nada
positivo.
Em vão os filósofos se esforçaram em sugerir que uma filosofia absolutamente autônoma,
independente de toda vida religiosa e de toda ligação com a “vida”, é possível. Existe nisso um
orgulho que sofre necessariamente um castigo imanente. Ao se liberar da submissão à religião, a
filosofia passa ao jugo escravo da ciência. Jamais houve, nem haverá jamais uma filosofia absolutamente autônoma, que se erga acima da “vida”. A filosofia é uma função da vida que toma
consciência de si mesma, ela é sua iluminação; ela cumpre sua tarefa na vida e para a vida, ele
depende sempre daquilo que acontece nas profundezas dessa vida. A filosofia tentou dissimular
sua natureza, que é sempre, positiva ou negativamente, religiosa. A filosofia grega, considerada
como o modelo mais puro da filosofia autônoma, foi religiosa nas suas fontes e nos seu pathos, e
refletiu a concepção religiosa dos gregos. A filosofia dos jônicos não pode ser compreendida a
menos que se a relacione com os sentimentos religiosos que a antiga Grécia possuía pela
natureza. A filosofia de Platão não pode ser decifrada senão à luz do Orfismo e de seus mistérios,
nos quais se buscava a libertação em relação ao mal e à morte. A filosofia de Plotino e dos
neoplatônicos se afirma conscientemente religiosa. O idealismo alemão está ligado ao
Protestantismo e a uma certa época do desenvolvimento interior do Cristianismo. Kant e Hegel
não puderam se colocar à margem do Cristianismo, malgrado o afastamento considerável entre
sua consciência e a consciência da Igreja. A filosofia racionalista do século XVIII, bem como a
filosofia positivista e materialista do século XIX, negativamente religiosas em seu pathos, refletem
a luta contra Deus, contra a fé cristã, e nelas não existe nenhuma autonomia, nenhuma pureza,
nem existe abnegação nesses movimentos filosóficos. O racionalismo, o criticismo, o empirismo,
conduzem a uma luta religiosa, mas eles não se livram de suas ligações que os prendem à vida. O
ateísmo consiste num estado da vida e da luta religiosa, tanto quanto a fé. Quase toda a ciência
objetiva consagrada à crítica bíblica e às pesquisas históricas sobre as origens do Cristianismo
levaram a uma luta religiosa; ela era movida por um pathos negativamente religioso. Essa ciência jamais se elevou ao conhecimento puro e inteiramente desimpedido. A incredulidade é uma
premissa da vida, na mesma medida que a fé. O positivismo sempre teve sua fé, que o guiava
pelos caminhos do conhecimento. A filosofia é o espírito que toma consciência de si mesmo, e ela
não pode ser independente de tal ou qual aspiração espiritual. Ela é determinada pela estrutura do
espírito, por sua qualidade, por sua aspiração ao mundo superior ou inferior, conforme esse
espírito seja fechado em si ou desabrochado. Podemos concluir daí que a filosofia é determinada
pela vida, porque o espírito é vida, porque o conhecimento que o espírito tem de si mesmo é o
conhecimento que a vida tem de si mesma.
A orientação do espírito determina a estrutura da consciência, a qual, por sua vez, determina a
consciência. O conhecimento é a vida espiritual, a atividade do espírito. O fato de que a filosofia
depende da vida, de modo algum justifica o relativismo. No próprio espírito, na própria vida, se
revelam as qualidades, de onde emana a luz do conhecimento. As qualidades do espírito possuem
uma natureza que não é relativa. O conhecimento é dinâmico, ele tem seu próprio destino, sua
história espiritual, suas épocas, suas etapas de desenvolvimento. Aquilo a que chamamos
metafísica ou teologia naturalista é a expressão da orientação do espírito, o reflexo da concepção
religiosa do mundo, que constitui uma das épocas anteriores no destino da consciência. Não
podemos considerar a metafísica e a teologia naturalista simplesmente como um erro. Elas
constituem um estágio indispensável no destino da consciência, no da vida religiosa. É por essa
via que o homem se encaminha para a luz. Não se descobriu imediatamente que o espírito
consiste num devir criador. Imaginava-se o espírito como algo acabado, ou seja, substancial. A
metafísica naturalista, com suas substâncias e seus objetos fixos, reflete mais ou menos bem
certos aspectos do ser, vistos a partir de uma orientação específica do espírito e de uma dada
estrutura da consciência. Ela indica o caminho, e não pretende exprimir a verdade absoluta e
definitiva do ser. O procedimento de substantificação dos metafísicos e dos teólogos, o fato de que
eles objetificam e erigem em absolutos certos momentos do desenvolvimento espiritual e certos
aspectos da vida espiritual, não é capaz de dar um significado perfeito, como aquele pretendido
pelos dogmas da fé. Esses não constituem nem uma metafísica, nem uma teologia, mas fatos da
experiência espiritual e da vida espiritual.
Um outro estado, uma nova orientação espiritual se torna possível, um novo momento começa,
quando a metafísica e a teologia naturalistas, com suas substâncias fixas, já não exprimem a
verdade da vida, porque o espírito toma consciência de si mesmo de outra maneira e se abre a
outra coisa, quando ele tende a se libertar da operação da natureza substancial, do jugo da
objetividade que havia ele conferido a si próprio. A fé, os dogmas da religião, não podem por
causa disso perder seu significado absoluto, mas passamos a vê-los sob outra luz, e eles se
revelam em uma nova profundidade. A religião não pode depender da filosofia, e a filosofia não
pode limitar e modificar a religião à sua maneira. O erro do “modernismo” consiste em querer
subordinar a religião à razão e ao conhecimento contemporâneo. Na realidade, trata-se de outra
coisa. A religião sempre teve sua filosofia, sua metafísica religiosa; esta não expressava senão
uma época do desenvolvimento espiritual do homem, não uma verdade religiosa absoluta e
definitiva. Sobre essa via espiritual, e na própria vida original, podem surgir modificações que
exigirão um novo simbolismo no conhecimento, uma outra estrutura de consciência. Não é a
filosofia que trará modificações à religião, mas na vida original alguns acontecimentos podem
exigir que as fases naturalistas e objetivas dos mistérios da vida religiosa sejam ultrapassados.
No
decurso da história do Cristianismo existiram homens que dominaram a metafísica naturalista e a
teologia, e para os quais os mistérios do Cristianismo se revelaram de maneira diferente. Elevar-se
acima da metafísica naturalista e da teologia, vencer essa concepção estática da vida religiosa,
que não vê nela senão substâncias e objetos, implica compreender o que são o espírito, a vida
espiritual, e no que o espírito se distingue da natureza. Uma metafísica abstrata não pode existir,
mas uma filosofia e uma fenomenologia da vida espiritual são possíveis.
II
Não é a distinção entre o espírito e a matéria, entre o psíquico e o físico, que aparece como a
oposição fundamental e última. É sobre essa distinção que foram elaboradas as metafísicas
espiritualista e materialista, todas as duas naturalistas. Estabeleceu-se, na “natureza”, uma
distinção entre o psíquico e o físico, que foram identificados com o espírito e a alma. A metafísica
religiosa e a teologia vão ainda mais longe ao estabelecer uma oposição entre o Criador e a
criação, entre a graça e a natureza. Mas nessa oposição, cujo sentido é pragmático e profundo, a
criação é naturalizada e objetivada, e, por conseguinte, naturaliza-se e objetiva-se o Criador. No
mundo natural criado, já não encontramos mais o espírito – o mundo é inteiramente naturalizado
e desprovido de qualquer profundidade. A profundidade só existe no Criador, que lhe é oposto, e o
espírito não está senão na ação da graça divina, de onde se pode deduzir que que somente o
Espírito Divino existe. Vemos o homem sob o ponto de vista do naturalismo, concedemos a ele
uma alma, mas retiramos dele o espírito. O homem passa a ser exclusivamente um a ser natural;
somente pela ação da graça ele se torna um ser espiritual. A teologia cristã afirma em geral que o
homem é constituído de uma alma e de um corpo, e que o espírito não passa da resultante, neles,
da ação do Espírito Santo. São Tomás de Aquino expressou em seu sistema, de uma maneira
clássica e clara, a antítese entre o “natural” e o “sobrenatural”. O tomismo naturaliza
definitivamente a existência do mundo criado, a existência do homem, e reduz a filosofia a um
conhecimento natural do natural. Nessa concepção da criatura natural, existe uma verdade
relativa aos caminhos seguidos pelo homem, a verdade de uma experiência autêntica. Entretanto,
a metafísica religiosa e a teologia, que pretendem expressar a verdade última e definitiva da
existência, consistem numa metafísica e numa teologia naturalistas. Não apenas a “natureza”, como também a “graça”, são ambas naturalizadas, porque são objetificadas, porque são sitiadas
“desde fora” e não “na profundeza”.
A antítese entre Espírito e Natureza deve ser considerada como primordial. Essa antítese não
significa que uma metafísica dualista qualquer deva ser estabelecida. A oposição se afirma numa
esfera que não é aquela da existência objetificada, vale dizer, naturalizada. O espírito não é a
realidade e a existência, no sentido em que a natureza é vista como realidade e existência. Essa é
precisamente a falta cometida pela teologia naturalista: o dualismo extremo entre o Criador e a
criação, entre o sobrenatural e o natural aí se alia a um monismo extremo na compreensão da
realidade e daquilo que constitui a existência. O sobrenatural se encontra sobre a mesma linha
ascendente que o natural, ele é também um natural, mas levado a um grau mais alto, a uma altura
incomensurável. A antinomia que existe entre o espírito e a natureza não nos fornece uma
metafísica dualista da existência, mas introduz uma distinção na compreensão da própria
realidade. Trata-se, antes de tudo, da antítese entre a vida e a coisa, entre a liberdade e a
necessidade, entre o movimento criador e a submissão passiva aos impulsos exteriores. O
primeiro ponto, e o mais elementar, que se pode estabelecer para conhecer o espírito é a
distinção de princípio entre “espírito” e “alma”. A alma pertence à natureza, sua realidade é uma
realidade de ordem natural, ela não é menos natural do que o corpo. A alma é uma entidade
diferente do corpo, do que a matéria [2]. Mas o espírito não pode ser oposto ao corpo e à matéria
como se ele fosse uma realidade de mesma ordem do que o corpo e o mundo material. É desde
dentro, das profundezas, que o espírito absorve em si o corpo e a matéria, assim como a alma,
embora o espírito pertença a uma outra realidade, a um plano diferente. A natureza não é negada,
mas iluminada no espírito. O espírito une interiormente à alma e a transfigura. A distinção entre
espírito e alma não implica a separação do espiritual e do psíquico. Mas todo psicologismo, em filosofia, não passa de uma forma de naturalismo. O espiritualismo não é ainda uma filosofia do
espírito, ele é uma metafísica naturalista, que tende a ver a substância da existência no psíquico,
nos fenômenos objetificados da alma.
A distinção entre o espiritual e o psíquico é muito antiga. Platão a conhecia. O apóstolo Paulo a
expressou com um profundo religioso. “O homem animal não compreende as coisas que são do
Espírito de Deus, pois elas lhe parecem loucura; e ele não as pode escutar, porque elas só podem
ser julgadas espiritualmente. Mas o homem espiritual julga todas as coisas, e ninguém pode julgá-lo [3]”. “Ele foi semeado num corpo animal, mas ressuscitará num corpo espiritual [4]”. As categorias
do “espiritual” e do “físico” são categorias religiosas e metafísicas. Os gnósticos salientaram a
diferença entre o espiritual e o psíquico, e abusaram dela. Hegel tinha consciência dessa
diferença, e considerava o conhecimento do espírito como o conhecimento mais concreto. A
distinção entre o espiritual e o psíquico é característico de toda mística. Todos os místicos
ensinaram o homem espiritual, a experiencia e o caminho espiritual. O espiritual, para eles, não
era jamais uma categoria metafísica abstrata, ele era a vida autêntica. A confusão entre o
espiritual e o psíquico nas categorias da existência metafísica objetificada, foi uma das fontes do
falso naturalismo e do falso espiritualismo. O espírito não é uma substância, ele não é uma
realidade objetiva, da mesma qualidade que as outras. O espírito é a vida, a experiência, o
destino. Uma metafísica racional do espírito é impossível. A vida não se revela senão na
experiência. O espírito é vida e não objeto, e, por conseguinte, ele não pode ser conhecido a não
ser por uma experiência concreta, numa experiência de vida espiritual, na realização do destino.
No conhecimento do espírito, o sujeito e o objeto não se opõem um ao outro. O espírito que
conhece é o mesmo que o espírito conhecido. A vida espiritual não é objeto do conhecimento, ela
é o próprio conhecimento da vida espiritual. A vida não se abre, senão para a vida. O
conhecimento da vida é a própria vida. A vida do espírito não se opõe ao conhecimento como uma
coisa objetiva, semelhante à natureza. Na vida do espírito e no seu conhecimento, tudo se passa
no interior, nas profundezas. Tudo o que se realiza no mundo espiritual, se realiza em mim.
III
A vida espiritual é a vida mais real. O espírito e o mundo natural são dissemelhantes, e não se
encontram exteriormente nem possuem nenhuma ação recíproca. Não é senão a uma
profundidade inefável que o espírito absorve em si o mundo e o ilumina com uma claridade
diferente. A vida espiritual não é uma realidade objetiva, mas ela é ainda menos uma realidade
subjetiva. Ambas as compreensões, a objetiva e a subjetiva do espirito são igualmente errôneas.
A questão da realidade costuma ser colocada, no mundo natural, como uma questão de relação, de
justa reflexão do objeto no sujeito. Existirá uma realidade em si mesma e por si mesma que possa
corresponder ao mundo concebido e conhecido por nós? Existirão efetivamente o ser físico ou
psíquico? Quando consideramos a Deus de um ponto de vista naturalista, a questão da realidade
de Deus é posta dessa maneira. A ideia que temos de Deus, corresponderá ela a uma existência
real de Deus? A prova ontológica da existência de Deus tende a deduzir a realidade divina da
ideia de Deus, da ideia do Ser Perfeito. Definitivamente, todas as provas da existência de Deus
possuem um caráter naturalista e concebem a Deus como uma realidade objetiva, semelhante
àquela do mundo natural. Da mesma forma, os argumentos invocados contra a existência de Deus
são naturalistas e tolamente realistas. O realismo ingênuo consiste justamente em transferir para o
mundo espiritual e divino a qualidade de realidade do mundo natural; os argumentos de
incredulidade, da negação de Deus e do mundo espiritual, sempre estiveram ligados a esse
ingênuo realismo naturalista.
A ideia de Deus existe, o sentimento de Deus existe; mas existirá uma realidade correspondente a
essa ideia, a esse sentimento? Eis a questão psíquica, que atormenta tantos homens e filósofos, e
é ao redor dessa questão que se desencadeiam as discussões e a luta entre os que tentam provar
a existência de Deus e os que a refutam. Mas a realidade do mundo espiritual e a realidade divina
não correspondem a nenhuma realidade de nossos sentimentos psíquicos e de nossos
pensamentos. A realidade do mundo espiritual, a realidade de Deus existe, não em relação ou por
comparação, mas antes em si mesma, como uma realidade de qualidade diferente, infinitamente
maior do que os sentimentos e os pensamentos do mundo psíquico, e do que os fenômenos do
mundo natural. Não é senão na experiência da alma e no pensamento a ela ligado, que se coloca
a questão referente à relação das realidades, que se concebe buscar as provas da existência
divina e da vida espiritual. Dentro de uma experiência espiritual esse tipo de questão não se
coloca; pois a experiência espiritual é a própria vida espiritual, a realidade do espírito, a realidade
do divino. As realidades espirituais são reveladas na vida espiritual e, por conseguinte, não pode
haver dúvida sobre a relação que existe entre as realidades e as revelações da vida espiritual no
mundo espiritual. No mundo espiritual, as realidades objetivas não correspondem à experiencia,
mas a experiência espiritual é ela própria uma realidade de ordem superior. A vida espiritual não é
o reflexo de uma realidade qualquer, ela é a própria realidade. É impossível se perguntar se existe
uma realidade que corresponde à experiência dos grandes santos, à dos místicos, à dos homens
de vida espiritual superior, pois essa é uma questão psíquica, naturalista, ingenuamente realista e
não espiritual. A experiência espiritual dos santos, dos místicos e dos homens de espiritualidade superior é a própria realidade, a aparição e a manifestação do Espírito e de Deus. O espírito
existe, a vida espiritual aparece e se manifesta.
Esse é um fato primordial: ele pode ser
constatado, mas não provado. A experiência espiritual é a maior realidade na vida da humanidade.
O divino se mostra nela, mas não se demonstra. Deus e a divindade, o espírito e o espiritual, não
são dados pela vida, pela experiência; eles se manifestam, mas não podem ser justificados pela
reflexão.
A meditação que consiste em se perguntar se a realidade da experiência mística não seria uma
ilusão e uma autossugestão, consiste numa reflexão da alma, separada do espírito e da
experiência espiritual; ela representa a impotência do pensamento que se opõe à própria vida.
Para aquele que possui uma vida, uma experiência espiritual, a questão de sua realidade não se coloca: para esse, a realidade não implica uma correspondência, algo extrínseco, uma
objetividade exterior. Nada corresponde à minha vida espiritual, ela existe por si mesma. Minha
vida espiritual é limitada, mas existe uma vida espiritual que é infinita, e essa vida infinita não é
para si mesma uma realidade exterior. Nada nesse mundo pode me provar que minha experiência
espiritual não existe. Pode ser que o mundo não exista, mas minha vida espiritual, minha
experiência do divino existe, ela é a manifestação da realidade do divino, ela é incontestável.
A elevação do espírito, sua intensidade, seu ardor existente, essas coisas são a própria realidade
do espírito, a manifestação do mundo espiritual. Os que afirmam que essa elevação, essa
intensidade e esse ardor são uma ilusão e uma autossugestão, esses provam simplesmente que
ignoram sua existência. Ora, a ausência de vida espiritual não pode ser uma prova de sua
inexistência, uma prova de que a elevação é uma ilusão. O Eros divino em mim é a própria
realidade do divino. a experiência do divino não exige que se prove sua realidade, ela é em si
mesma essa realidade. No mundo espiritual, a realidade não é determinada por um dado exterior,
mas ela resulta da orientação e da intensidade da própria vida espiritual. A descoberta da
realidade depende da atividade do espírito, de sua intensidade, de seu ardor. Não podemos
esperar que as realidades espirituais nos sejam reveladas como o são os objetos do mundo
natural, que elas nos sejam dadas desde o exterior como o são as pedras, as árvores, as mesas,
as cadeiras, como nos são dadas as leis da lógica. Na vida espiritual, é a força do espírito que
determina a realidade. No espírito, a realidade não é extrínseca, mas ela procede do interior do
espírito. A questão da ilusão e da não-realidade da vida e da experiência espiritual decorre do fato
de que as identificamos com a vida e com a experiência psíquica.
Mas não será o espiritual unicamente o psíquico, não será a experiência espiritual simplesmente a
vida emocional da alma? Não será a vida espiritual subjetiva e, por isso mesmo, não convincente?
Não podemos provar, a alguém que não conhece mais do que a experiência psíquica, que uma
experiência espiritual é possível, não podemos, exteriormente, obrigar alguém mergulhado no
isolamento subjetivo, a reconhecer a existência das realidades espirituais. Somente a experiência
espiritual pode convencer de sua própria existência, somente a manifestação das realidades
espirituais num homem pode provar a ele a existência dessas realidades. Quem não está
orientado para Deus não pode exigir que esse lhe seja mostrado, ou que Sua realidade lhe seja
demonstrada. É impossível constranger um homem a reconhecer a realidade da vida espiritual,
como se pode obrigá-lo a admitir a realidade do mundo natural. É preciso que essa vida espiritual
se revele por si mesma à pessoa. Mas, da mesma forma, não se pode provar que não exista uma
vida espiritual, que o espírito e Deus sejam ilusões sem correspondência com coisa alguma. A
vida espiritual é uma realidade extra-objetiva, ela não está ligada a nenhuma determinação do
tempo, do espaço ou da matéria, ela é uma realidade ideal por comparação às realidades do
mundo objetivo, ela é a realidade da vida inicial.
O espaço e o tempo dentro dos quais nos é ofertado o mundo natural, são criados pelo espírito, e
não designam mais do que um estado do mundo espiritual. A realidade da vida espiritual não é
determinada por uma série de causas no mundo físico e psíquico, mas ela se determina a partir da
profundidade, do seio mesmo da vida inicial. Se, na história do mundo, mesmo que apenas em
uns poucos homens, tenha se abrasado uma vida espiritual superior e tenha sido despertada uma
sede do divino, bastaria isso para provar a realidade do espírito e de Deus, e o mundo natural
seria alçado acima de si mesmo.
Como provar e justificar a própria existência da experiência espiritual? Muitas pessoas negam a
originalidade qualitativa da experiência espiritual e a reduzem inteiramente a uma experiência
psíquica, a um objeto da psicologia. Mas as objeções à possibilidade e à existência da experiência
espiritual provêm sempre de sua inexistência naquele que as negam. Pelo fato de que as
qualidades da experiência espiritual sejam inacessíveis a alguns, e mesmo à maior parte da
humanidade, não se segue que essa experiência seja inexistente, ou que ela seja impossível. O
fato de que a consciência de um homem seja limitada não lhe dá o direito de estender essa
limitação a todos os homens. Se X ou Y jamais tiveram uma experiência mística, isso só prova a
limitação de sua experiência, mas não os autoriza, de modo algum, a negá-la nos outros. O
empirismo autêntico, consequente, absoluto, não dá o direito de estabelecer limites à experiência.
Se na experiência de minha vida, uma coisa qualquer não se revelou, não posso concluir que ela
não se revelará a outros. É preciso ter mais modéstia, mais consciência das limitações de nossa
própria natureza, sem estendê-las à natureza humana em geral; essa é uma condição
indispensável a todo conhecimento, a docta ignorantia. Mas os homens que possuem uma
experiência limitada se orgulham de sua limitação e a erigem em norma para os demais. A
“consciência média” cria uma espécie de tirania e seus limites são identificados aos da natureza
humana em geral. Essa consciência nega absolutamente a experiência espiritual, a possibilidade
do milagroso, e rejeita toda mística. Ela penetra na vida religiosa e afirma seu positivismo até
mesmo nela. Essa “consciência média” é a consciência do homem natural, ela é a afirmação
desse mundo natural, como se ele fosse o único real, e é também a negação do homem, da
experiência e do mundo espirituais. Ela manifesta um contentamento de si e uma suficiência, uma
consciência burguesa, sentindo-se a dona da situação do mundo. Mas a existência da experiência
espiritual e do mundo espiritual nos são demonstradas por aqueles que os possuem. Os que não
possuem essa experiência ou que não puderam se elevar até sua percepção, não têm o direito de
se pronunciar a esse respeito. Devemos falar daquilo que conhecemos, não do que ignoramos.
O positivismo erige a ignorância como o próprio princípio do conhecimento, e confere as
prerrogativas desse àqueles que são privados da experiência espiritual. O positivismo vê nessa
ignorância e na ausência de experiência uma garantia de objetividade científica. Presume-se que
são os seres desprovidos de experiência religiosa e de fé, os únicos que podem, de modo mais
fecundo, se ocupar da ciência e da história das religiões. Essa é uma das maiores aberrações. As
ciências do espírito se distinguem, por seu próprio caráter, das ciências naturais, pelo fato de que
elas exigem um parentesco e uma afinidade entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. As
ciências relativas ao espírito repousam sobre uma experiência espiritual, e quem não conheceu
essa experiência, e que a nega todo o tempo, nada pode obter delas. A experiência espiritual não
é uma experiência psíquica, psicológica, concentrada em si, na qual a personalidade é absorvida
em si mesma. Ela é uma experiência de expansão que entreabre o mundo espiritual suprapessoal,
que revela o laço que une o microcosmo ao macrocosmo. Ela corresponde sempre a uma fissura
na mônada psico-corporal, a uma saída de si pela imersão nas profundezas de si; ela marca uma
vitória sobre as divisibilidades e sobre todo “extrinsecismo”.
A negação da realidade do mundo espiritual provém habitualmente do fato de que ele é concebido
sob a forma da existência metafísica substancial, como uma realidade objetiva. Mas a substância
é uma mônada acabada e fechada. Uma concepção substancialista da alma a mantém separada
do mundo espiritual e torna impossível a experiência espiritual. A substância fica encarcerada em
seu próprio mundo psíquico. Um mundo concentrado em si é sempre um mundo da alma, e não
do espírito. Para as substâncias psíquicas, o espírito se mostra, de certa forma, como uma
realidade transcendente que se opõe a elas exteriormente e à distância. Assim se dá a inserção
do homem no mundo natural e sua subordinação às suas leis. A metafísica espiritualista que ainda
permanece naturalista é obrigada a negar a experiência espiritual. Assim é que ela habitualmente
se liga a uma teoria racionalista do conhecimento. A alma é considerada como uma realidade
análoga a do mundo material. Esse é um ponto de vista estático da alma e do mundo, que fecha
ao conhecimento a dinâmica da vida. Nessa metafísica, Deus é visto como uma substância inerte;
Deus, o mundo e a alma se encontram separados e, por conseguinte, toda experiência espiritual
se torna impossível. Ela não é possível a não ser que se suponha o homem como constituindo um
microcosmo, no qual se revela todo o universo, sem que existem limites transcendentes a isolar o
homem de Deus e do mundo. Deus é espírito, e por isso mesmo Ele não pode ser uma
substância. A natureza do espírito está mais para Heráclito, não para Parmênides. O espírito é um
movimento incandescente.
É falso supor que a personalidade seja necessariamente uma substância, e que ela deva ser
limitada, isolada, supor que a negação da substância seja a negação da personalidade. Na
realidade, a personalidade concreta, viva, não possui nenhuma semelhança com a substância. A
natureza da personalidade é dinâmica. A personalidade é antes de tudo uma energia espiritual
qualitativamente original, uma atividade espiritual, ela é o centro da energia criativa. A existência
da personalidade não implica necessariamente uma separação em relação a Deus e em relação
ao mundo. O suprapessoal, na personalidade, não a nega, mas a constrói e a afirma. A existência
da personalidade, no sentido verdadeiro do termo, não é possível senão pela eclosão nela de
princípios espirituais que a ajudam a sair de seu estado de isolamento e a unem ao mundo divino. A personalidade é a ideia divina, o desígnio de Deus. Conceber a personalidade como uma
substância naturalista, equivale a limitá-la na experiência e no caminho espirituais.
Toda
experiência religiosa, autêntica e mística, testemunha que a personalidade não é uma substância
isolada, mas que ela traz, oculta em si mesma, possibilidades inéditas, que diante dela se estende
um mundo infinito, e que ela é o reservatório da energia espiritual.
Na vida espiritual, o pessoal e o suprapessoal estão unidos de maneira antinômica, de modo que
o suprapessoal não nega o pessoal, enquanto que esse último se eleva até ele sem se aniquilar
nele. A existência se revela em sua natureza interior quanto vida, enquanto experiência espiritual,
destino, mistério divino, e não como substância ou natureza objetiva. A vida espiritual é dinâmica
no mais alto grau, ela é uma vida em tudo semelhante à vida. A doutrina de Leibnitz relativa à
alma humana, como uma mônada fechada, e relativa a Deus, como mônada suprema, que existe
no mesmo nível que as demais mônadas, é um exemplo de metafísica naturalista, embora nela
existam alguns elementos de uma concepção espiritual autêntica.
Na vida espiritual, não existe heterogeneidade absoluta, nem impenetrabilidade substancial, que
possam impor limites intransponíveis. As substâncias são criadas pelo espaço, pelo tempo, pela
matéria, e é seu caráter que adquirem as almas presas ao mundo corporal. A substancialidade
não passa de um estado do mundo, ela não é mais do que sua solidificação, sua ossificação e sua
escravidão, e não sua essência interior. Esse mundo natural é filho do ódio e da divisão, que
geram o aprisionamento e a servidão. O espírito é liberdade. Essa definição de Hegel permanece
sendo uma verdade imutável, que nos é confirmada pela experiência espiritual da humanidade. As
restrições e os limites exteriores são criados pelos dejetos da vida exterior, pela existência em
modo extrínseco das coisas desse mundo. A coisa é justamente aquilo que se se encontra fora, e
não na profundidade. O espírito reside sempre na profundeza, o próprio espírito é profundidade,
ele é interior e não exterior, e sua vida não pode gerar absolutamente nada de exterior, de
superficial, de extrínseco, nada que possua inércia e impenetrabilidade. A profundidade é um
símbolo do espírito. O mundo natural, tomado em si mesmo, não conhece a profundidade; sua
profundidade só pode ser revelada no espírito, quando se considera esse mundo natural como um
símbolo do espírito, como um momento interior do mistério do espírito. Mas a compreensão do
mundo espiritual exige sua delimitação em relação ao mundo natural, a vitória sobre todas as
confusões, a recusa de uma naturalização da vida espiritual, tão típica dos sistemas metafísicos.
Assim como não existe nenhum “extrinsecismo”, nem divisibilidade, na vida espiritual, tampouco
existe nela essa oposição entre a unidade e a pluralidade, sobre a qual repousa a vida do mundo
natural. A unidade não se opõe à pluralidade como se fosse uma realidade exterior, mas, ao
contrário, ela a penetra, cria sua vida, sem lhe retirar o estado de pluralidade. “Eu estou no Pai,
vós estais em mim e eu em vós [5]”. “Não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim [6]”. É sobre
essa vitória interior sobre o “extrinsecismo” do um e do múltiplo, que repousa a vida espiritual. A
oposição entre o um e o múltiplo, o “extrinsecismo” de um em relação ao outro tem origem no
espaço, no tempo, na matéria, que são já resultados da Queda, da separação de Deus. A vida
espiritual se desenrola fora do tempo, do espaço, da matéria, ainda que esteja ligada a elas como
a uma imagem simbólica da divisão interior do espírito. Na vida e na experiência espiritual me é
dada a unidade interior de meu destino, do destino do mundo e do destino de Deus. Na
experiência espiritual meu destino deixa de ser divisível e isolado, e isso significa que a vida
espiritual está num grau mais elevado do que a vida concreta. A realidade natural é uma realidade
abstrata e divisível, na qual jamais se realizam a integridade a plenitude e a união absoluta. Na
vida espiritual a integridade e a plenitude da existência são dadas, todos os degraus da existência,
transformados e transfigurados, fazem parte dela, o ódio e a heterogeneidade são superados, a
objetividade é vencida. A vida espiritual não é uma separação da vida do mundo natural, e o
sentido do ascetismo e da purificação, que lhe são indispensáveis, não reside nisso. A
espiritualidade abstrata é uma forma de espiritualidade muito imperfeita. Infinitamente mais
elevada é a espiritualidade concreta que transfigura e ilumina a vida do mundo.
A vida espiritual não é uma realidade de mesma ordem que a realidade física e psíquica, que a
realidade do mundo natural, mas ela absorve em si toda a realidade, considerando-a apenas como
uma “simbolização”, como um reflexo de seus estados, de seus eventos interiores e de seus
caminhos. O espírito não se opõe absolutamente à carne; a carne é a encarnação e o símbolo do
espírito. A vida espiritual é uma vida histórica, pois essa é uma vida concreta. Mas a realidade
histórica exterior não passa de uma imagem da vida espiritual no tempo, na divisibilidade. Tudo o
que é exterior não passa de um símbolo do que é interior. A própria matéria não é mais do que a
“simbolização” dos estados interiores do mundo espiritual, a “simbolização” de seu ódio e de sua
divisibilidade, e não uma substância que existe por si mesma. Não estamos afirmando o
espiritualismo, a espiritualidade abstrata, mas o simbolismo, a espiritualidade concreta.
A vida espiritual não é percebida na análise psicológica dos processos da alma. A psicologia é
uma ciência que trata da natureza, não do espírito. A vida espiritual, enquanto qualidade
específica da vida da alma, normalmente escapa à ciência psicológica. A maior parte dos
processos psicológicos devem ser relacionados com os fenômenos do mundo natural, processos
que são ligados ao corpo e ao mundo material, que escoam no tempo, que possuem algum tipo de
relação com o espaço e se desenvolvem no isolamento, na divisibilidade, na união exterior. A
psicologia analisa de um modo abstrato a vida espiritual e se vê em presença de uma realidade
abstrata. Ora, a vida espiritual é concreta e exige um estudo concreto, ela se revela no
conhecimento de uma cultura espiritual concreta, e não no conhecimento dos elementos abstratos
da alma. O conhecimento da vida espiritual é uma ciência histórica, uma ciência que trata da
cultura e não uma ciência natural, para empregarmos a expressão imperfeita de Rickert.
Os
materiais da filosofia da vida espiritual são constituídos pela própria vida espiritual da humanidade,
tal como ela se desenvolveu na história: é sempre a vida concreta, quer se trate de religião, de
mística, de filosofia, de ciência, de moral, de criação artística. Basta que consideremos os grandes
monumentos do espírito, as grandes manifestações da vida espiritual!
Essa experiência espiritual,
histórica, da humanidade, deve ser relacionada com a experiência espiritual da pessoa, e a ela
deve ser comparada.
A pessoa que pretende conhecer deve abrir sua alma, até que nela se derrame essa vida
espiritual única que se revela na história do espírito. É nos estados mais elevados da cultura
espiritual que se manifesta a experiência espiritual autêntica. Por meio deles se adquire uma vida
espiritual intemporal. Quem busca a vida espiritual deve estar com todos aqueles que participaram
do desenvolvimento do conhecimento do espírito na história. Eis porque a filosofia do espírito
contém inevitavelmente em si um elemento tradicional, que ela pressupõe uma comunhão com a
tradição. A personalidade, ao se isolar, não pode conhecer a vida, pois ela não pode começar por
si mesma. O ponto de partida de Descartes não favorece o conhecimento da vida espiritual. O
reconhecimento da autenticidade da vida espiritual na humanidade anterior é uma premissa
indispensável na filosofia da vida espiritual. Platão não é para nós simplesmente um objeto de
investigação; nós vivemos com ele uma vida em comum, uma mesma experiência, nós nos
encontramos com ele na vida espiritual, em suas profundezas. O mundo espiritual não se revela
no mundo natural exterior, mas no espírito humano, na vida espiritual do homem e da
humanidade, e seu conhecimento pressupõe um espírito ecumênico dentro da humanidade [7].
Esse ecumenismo espiritual é em tudo estranho à psicologia e à metafisica espiritualista. A
biografia dos santos e dos gênios, as criações dos inovadores religiosos, dos grandes pensadores,
dos grandes artistas, os monumentos da vida espiritual da humanidade, são de uma importância
infinitamente maior dos que as deduções do pensamento abstrato. A vida espiritual se manifestou
de forma concreta e real na experiência espiritual da humanidade, e nos legou numerosas
criações. Já não mais se trata de uma manifestação da natureza, mas de uma manifestação do
espírito. O sentido profundo da tradição religiosa consiste em descobrir a vida espiritual, não na
natureza exterior ou no pensamento abstrato, mas no ecumenismo espiritual.
IV
A vida religiosa constitui uma experiência espiritual e não uma experiência psicológica ou uma
realidade que nos vem de fora. A vida espiritual é o despertar, a eclosão da alma. Eis porque a
vida religiosa é uma obtenção de “parentesco”, uma vitória sobre a heterogeneidade e o
“extrinsecismo”. A religião pode ser definida como uma experiência de intimidade, de parentesco
com a existência. Na vida religiosa, o homem supera a angústia daquilo que é estranho e distante.
Mas a intimidade e o parentesco com a existência só se revelam na experiência espiritual; na
experiência psíquica e sensível ela se apresenta esfacelada e isolada.
Quando a existência nos
parece estranha e distante, quando ela nos oprime, é porque não estamos no espírito, mas
estamos num mundo isolado, corporal e psíquico. Eis porque o espírito não é apenas liberdade,
mas também amor, união, penetração recíproca das partes da existência na vida única e concreta.
Eis porque o Cristianismo é a revelação da vida do espírito.
É na experiência e no mundo espiritual, e não na experiência psíquica e no mundo natural, que se
desenrola o drama da existência, as relações entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. A
vida espiritual não significa ainda a vida perfeita, isenta de pecados. Nela subsistem, em estado
latente, as fontes do pecado e as divisões que geraram nosso mundo natural. A vida espiritual
pode decair de sua própria natureza. Nela se revelam e se realizam todos os acontecimentos
religiosos que permanecem invisíveis na vida natural. A vida espiritual é a vida simbólica, vale
dizer, a vida que une dois mundos, que une Deus e o mundo, e nela estão dados os encontros e
as intersecções; é sobre o plano espiritual, na vida espiritual, que se realiza a criação do mundo;
Deus desejou um outro si-mesmo e uma reciprocidade de seu amor, mas depois veio a queda e o
Novo Adão revelou a natureza humana decaída. Todos esses acontecimentos do mundo espiritual
não deixaram de se refletir simbolicamente no mundo natural e histórico. A teologia naturalista,
que confunde e ao mesmo tempo separa os dois planos da existência, considera todos os
acontecimentos do mundo espiritual como se realizando sobre essa terra, nesse tempo e nesse
espaço. O mundo foi criado por Deus no tempo como um dado da ordem natural, um evento
objetivo, o paraíso se encontrava sobre essa terra, entre o Tigre e o Eufrates, foi lá que se produziu
a queda etc., etc.
Essa é a ingênua ciência bíblica que, refletindo o naturalismo primitivo, não concebe a diferença
entre a natureza e o espírito. A teologia escolástica assimilou essa ciência bíblica infantil e
concebeu os mistérios da vida espiritual como eventos da ordem natural. O mundo natural parece
tão endurecido, que o pensamento religioso sofre para escapar de seus limites e tem dificuldade
em conceber que esse mundo natural não é ele próprio senão o reflexo do mundo espiritual, não
mais que um acontecimento na vida espiritual, que esse endurecimento é um estado de espírito
que não poderá durar. A queda não pôde se realizar no mundo natural, porque esse mundo é ele
próprio um resultado da queda. A queda é um evento do mundo espiritual; nesse sentido, ela é
anterior ao mundo, ela aconteceu antes do tempo e gerou nosso tempo. Somente o
intelectualismo supõe que as realidades estão fora do espírito, que elas são exteriores em relação
a ele. Mas o intelectualismo é uma falsa teoria do conhecimento.
As ideias e crenças religiosas nada tem a ver com as verdades abstratas da metafísica. Elas estão
ligadas aos fatos e acontecimentos do mundo espiritual, que se revelam na experiência espiritual.
Esses fatos e acontecimentos não guardam semelhança com as categorias do pensamento
abstrato, nem com as substâncias da natureza. As ideias e as crenças religiosas não podem ser expressas senão pelas categorias da experiência espiritual, pela tragédia interior da vida e do
destino. Percebemos a vida espiritual como um paradoxo. Seus eventos, nos quais se revela a
mais profunda substância da existência, são, para a razão e a consciência racional, paradoxais e
antinômicos, eles são inacessíveis a conceitos. Na vida religiosa, enquanto vida espiritual e não
natural, a identidade dos contrários se revela a nós: a identidade do monismo e do dualismo, da
unidade e da pluralidade, da imanência e da transcendência, de Deus e do homem. Todas as
tentativas feitas pelos sistemas de teologia naturalista e racionalista para eliminar o paradoxo da
vida espiritual são inteiramente exotéricos e não possuem mais do que um valor temporário e
pedagógico. Elas correspondem ao estágio naturalista na história da consciência religiosa, na
apreensão do Cristianismo. O naturalismo teológico é um realismo ingênuo, ele constitui uma
percepção do espírito objetivado na natureza, invertido no mundo natural objetivo; mas a
revelação do mundo espiritual representa uma vitória sobre o naturalismo, vitória que tem seu
lugar na mística religiosa. Para os místicos, tudo se realiza em profundidade, vale dizer, no mundo
espiritual. As religiões se dividem em religiões do espírito e religiões da natureza. O Cristianismo é
a religião do espírito, mas não no sentido que nos ensina Hartmann. Não podemos deixar de
apreciar a espiritualidade da Índia, mas ela é uma espiritualidade abstrata que ignora a
personalidade concreta.
Uma atitude materialista em relação a Deus, concebido como um ser metafísico transcendente,
imóvel e substancial, representa a última forma de idolatria na história do espírito humano. O
monoteísmo também pode ser um paganismo. O homem sujeitado pelo mundo natural concebe
Deus como sendo uma grande força exterior, como uma potência “sobrenatural”, em tudo
semelhante à potência “natural”. Deus não passa de uma potência mais elevada, a mais perfeita,
ou seja, a projeção do ser natural. Essa força suprema deve ser apaziguada. O deus
transcendente se vinga, assim como os deuses e os homens do mundo natural. O Cristianismo
apareceu no mundo como a vitória perfeita sobre a idolatria e a submissão. Ele afirmou a religião
do espírito e da vida espiritual, a religião da Trindade, como pátria do espírito, na qual Deus se
revela como um Pai, amoroso e próximo. Mas a humanidade natural apôs seu selo naturalista
sobre a percepção e a revelação das verdades cristãs. Os próprios dogmas da fé cristã, que são
fatos e encontros místicos do mundo espiritual, foram traduzidos pelos sistemas teológicos na
linguagem do mundo natural e da razão. Mas Deus é vida, não é possível expressá-Lo por meio
das categorias de pensamento feitas para a natureza, pois ele não difere das realidades do mundo
natural, e ao mesmo tempo ele não pode ser concebido como “sobrenatural”, pois o sobrenatural é
ainda algo semelhante ao “natural”. Deus é vida, e não pode se revelar senão na vida espiritual.
Mas os mistérios da vida divina não podem ser expressos senão pela linguagem interior da
experiência espiritual, por uma linguagem de vida e não pela linguagem da natureza objetiva e da
razão. Veremos que a língua da experiência espiritual é inevitavelmente simbólica e mitológica,
que se trata sempre de eventos, de encontros, de destino, e nessa língua não existe nenhuma
categoria ou substância fixa. As próprias noções de alma e de espírito possuem uma origem
mitológica. Todas as verdades relativas a Deus devem ser incorporadas à profundidade espiritual.
O deus do naturalismo religioso é ainda um objeto de idolatria. Ele representa a última forma de
divinização da natureza, mesmo quando é concebido a partir da perspectiva de um teísmo
extremo, ou quando se supõe o criado como não divino. a relação entre Deus e o homem é uma
relação interior, que se revela na vida espiritual, e não uma relação exterior entre o “sobrenatural”
e o “natural”, que se revelaria no mundo natural. É assim que o compreendiam os místicos cristãos
e é com eles que devemos aprender o conhecimento dos mistérios da vida espiritual. Esse se
revela, não na teologia, que jamais se libertou inteiramente de uma forma de pensamento
naturalista, mas na mística, constantemente absorvida pelo mundo espiritual. O Cristianismo
sempre viveu dessa profundidade, nela encontrando seu alimento. Quando aconteceu dele se
voltar para o exterior, para a superfície, assimilando-se ao mundo natural, ele se degenerou e se
arruinou.
V
A questão do critério da verdade, do princípio que sanciona o conhecimento da verdade, da
autoridade na fé, não é uma questão espiritual. Essa questão, característica do pensamento
reflexivo próprio ao conhecimento religioso e científico, nasce no ser natural e no homem psíquico,
e por sua causa.
O Desdobramento, a oposição, não são elementos da vida espiritual. A alma pode se considerar
como sendo oposta ao objeto, e ela pode se interrogar sobre o critério de seu conhecimento. Mas
nenhum objeto se opõe ao espírito, e assim a questão do critério não se coloca. Somente um
objeto que seja estranho e impenetrável pode provocar a questão do critério de seu conhecimento.
Na vida espiritual, não existe objeto do conhecimento, nem objeto de fé, porque não existe posse,
aproximação interior, parentesco com o objeto, absorção desse objeto pela profundidade.
O
critério da verdade no espírito é a manifestação mesma do espírito, a contemplação intuitiva no
espírito dessa verdade, como o é da própria realidade, da própria vida. A verdade, na vida
espiritual, não é nem o reflexo, nem a expressão de uma realidade qualquer, ela é a realidade, o
espírito em sua vida interior. Na vida espiritual, não existe nem objeto, nem sujeito que reflita esse
objeto, no sentido gnosiológico do termo.
Na vida espiritual tudo se resume a ela mesma, tudo se identifica com ela. Nela não existe ideia ou
sentimento de Deus, mas a revelação do próprio Deus, a manifestação do divino. É por isso que
na vida espiritual não existe a alma isolada, um sujeito dividido. A experiência espiritual é
precisamente a saída de um estado no qual se opõem por toda parte objetos “extrínsecos”. A
verdade na vida espiritual é a própria vida. Quem conhece a verdade se torna a verdade em si:
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida [8]”. Já não é uma verdade abstrata, não é uma relação. A
Verdade é também o caminho e a vida, pois para ela não se trata de autoridade e de critérios
exteriores, e ela não exige nenhuma garantia. A verdade se revela no caminho e na vida.
Na vida
espiritual descobrimos que o conhecimento é um acontecimento interior, uma iluminação da
existência e da própria vida. A existência não se opõe ao conhecimento como se fosse um objeto,
mas na própria existência nasce a luz que ilumina suas trevas. No mundo natural, nascido da
cisão e da divisão, o sujeito conhecedor é separado do objeto conhecido, ele é separado da
existência. A qualidade da espiritualidade é obtida quando não existe mais divisibilidade, quando o
sujeito conhecedor se encontra nas profundezas do ser. O homem espiritual vive nessa
profundeza, e de seu conhecimento brota a luz.
É na vida espiritual que a Verdade em si pode ser obtida; ela não pode ser percebida nem
conhecida de fora. A reflexão é inteiramente um apanágio do mundo objetivo; ela busca,
penosamente, os critérios da verdade fora dessa mesma verdade, de sua possessão, fora de uma
vida na verdade. Ora, fora dessa verdade, num plano que seria inferior a ela, é impossível
encontrar seu critério. A Verdade em si mesma é seu único critério. É possível encontrarmos o
critério para nossa fé em Deus e para nosso conhecimento de Deus? Essa questão não pode ser
colocada senão por um homem psíquico. O critério de nossa fé e de nosso conhecimento não
pode ser encontrado fora de Deus, de Sua manifestação em nós, de nossas relações com Ele;
esse critério não pode existir no mundo natural inferior. Quando reclamamos um critério de
autoridade para nos convencer da existência de Deus e para nosso discernimento sobre o que é
divino no mundo, acabamos por buscar um apoio, uma sustentação, não no próprio Deus, nem na
realidade divina, mas na realidade natural inferior, no mundo exterior. Dessa forma, o homem se
vê oprimido pelo mundo natural, e o homem espiritual sofre o jugo do homem natural.
O “autoritarismo” na vida religiosa consiste precisamente na busca, num mundo inferior, de
critérios que deveriam servir a um mundo superior, de critérios do mundo espiritual extraídos do
mundo natural, ou seja, ele é uma manifestação de maior confiança no exterior do que no interior,
na opressão do mundo natural, mais do que na liberdade do mundo espiritual. A tese da
infalibilidade do Papa e a gnoseologia kantiana são, num certo sentido, fenômenos de mesma
ordem: a procura da justificação e do critério fora da possessão em si da verdade. O
“papocesarismo” e o “cesaropapismo” são manifestações extremas desse sufocamento do espírito
pela natureza, e a busca de sinais visíveis do divino na realidade tangível, à qual se concede mais
confiança do que à vida e à experiência espiritual. Assim é que o inferior se torna um critério para
o superior e a Verdade passa a ser percebida, não pelo caminho e a vida, nem pela própria
Verdade, mas pelo reflexo extrínseco da Verdade. mas no mundo espiritual, a Verdade – que é o
próprio Deus – é a única autoridade, o único critério da Verdade, e o homem possui a Verdade
pela vida nela, pela experiência que ele possui dela, por suas relações com ela.
No mundo espiritual, tudo se passa de outra maneira do que no mundo natural, mas esses dois
mundos se confundem e se relacionam. O homem é um ser complexo, a um tempo espiritual,
supranatural e psico-corporal, natural. O homem é o ponto de interseção entre dois mundos, o
lugar onde eles se encontram, ele pertence a duas ordens diferentes. Nisso reside a dificuldade e
a complexidade da vida humana. Existem dois homens, uma espiritual e um natural. O mesmo
homem é espiritual e natural. O mundo espiritual se revela no homem psíquico natural como sua
modalidade particular, mas o homem natural não desaparece. É por isso que a vida espiritual não
aparece no homem em toda sua pureza. Não é dado ao homem se elevar facilmente acima do ser
natural e renunciar a ele. o caminho que conduz à vida espiritual é um caminho árduo, e nenhum
homem pode se considerar como sendo unicamente espiritual. Todo homem está ligado
organicamente ao estado de todo o universo, e todo homem possui seus deveres para com esse
mundo natural. Considerar-se orgulhosamente como sendo unicamente espiritual, a exemplo dos
gnósticos, é um erro perante Deus. O homem deve trabalhar pela iluminação e a espiritualização,
não apenas com sua alma e com seu corpo, mas com as almas e corpos de todo o universo. O
espiritual não deve se afastar do psíquico e do corporal, mas deve iluminá-los e espiritualizá-los. É
por isso que o Cristianismo não pôde ser exclusivamente espiritual, pois ele tinha que ser também
psíquico. É aí que residia a grande Verdade da Igreja que desce ao mundo pecador. O
Cristianismo age no mundo natural, e é daí que provêm os obstáculos que ele encontrou ao longo
de sua história. A correlação entre o espiritual e o psíquico foi muitas vezes incompreendida na
história do Cristianismo e a verdade cristã foi deformada pelo mundo natural. Mas essa fraqueza é
própria a toda atividade no mundo.
Nos sistemas teológicos não costumamos encontrar oposição entre natureza e espírito, mas uma
oposição entre natureza e graça, entre o natural e o sobrenatural. Aí o espírito não possui
propriedades independentes; ou bem ele é incorporado à natureza, e pouco se distingue da graça,
vale dizer que ele é naturalizado; ou bem ele se refere ao ser divino e aparece então como sendo
a graça do Espírito Santo. A naturalização aparece precisamente quando o divino e o espiritual
são, de certa forma, suprimidos do mundo criado e o homem se vê, por causa disso, considerado
como um ser exclusivamente natural, como uma mônada psicofísica. Ao homem são atribuídos
uma alma e um corpo, mas o espírito é transferido para uma esfera transcendente, na qual ele não
é senão o apanágio do ser divino. O espírito é rejeitado da profundidade do homem para um
longínquo transcendente, para um mundo além. Somente o exterior do espírito é conferido ao
homem. Somente pela graça ele pode se transformar num ser espiritual, e, por sua natureza, ele é
exclusivamente psíquico e corporal. Afirma-se assim o dualismo extremo do Criador e da criação.
Do estado de graça e do homem natural. O homem e o mundo são essencial e primitivamente
não-espirituais e não-divinos.
Tal doutrina teológica e metafísica, que recusa ao homem a imagem e a semelhança de Deus,
jamais foi preponderante no Cristianismo. Os místicos cristãos sempre nos ensinaram o homem
espiritual e a imanência do caminho espiritual. O sistema teológico metafísico, baseado sobre o
dualismo extremos do Criador e da criação, da graça e da natureza, que rejeita a espiritualidade
do homem, não é, dentro do Cristianismo, a única doutrina possível e definitiva que se refere ao
ser. Não existe nela senão um estado de alma humano que corresponde a um dado momento do
desenvolvimento espiritual do homem, que reflete um estado específico da experiência e da vida
espirituais. A ausência de espírito e de vida espiritual não é um estado normal do homem, mas
antes um estado de pecado, um enfraquecimento nele da imagem e da semelhança divinas.
Nesse estado, o espírito assiste o homem como um principio transcendente e extrínseco. A
personalidade empírica, mergulhada no mundo natural, afastada de Deus, se vê condenada a uma
existência dividida. O espírito é para ela, sempre, algo extrínseco, um “extrinsecismo”.
A consciência do pecado se transforma em consciência da transcendência do espírito. Temos às
vezes a impressão de que a teologia oficial e os preceitos da Igreja recusam considerar o homem
como um ser espiritual, que tentam imunizá-lo contra as tentações da espiritualidade. O
Cristianismo da alma é reconhecido como mais verdadeiro e mais ortodoxo do que o Cristianismo
do espírito. Ter consciência de si como uma ser espiritual provoca a acusação de orgulho;
reconhecer-se como sendo indigno de possuir o espírito e a vida espiritual é qualificado como
humildade. Forma-se sobre esse terreno um positivismo cristão original e um espírito burguês que
respondem à consciência média, ao homem psíquico. A espiritualidade é considerada como o
apanágio dos santos, dos ascetas, dos starsi. A espiritualidade dos homens, que não alcançaram
os níveis elevados de perfeição e que não adquiriram a graça do Espírito Santo, desperta sempre
uma suspeita, pois imagina-se que ela não provém de Deus. Assim, desconfia-se de toda vida
espiritual que não caiba dentro da concepção da Igreja relativa à aquisição dos dons do Espírito
Santo. O espírito é o Espírito Santo, a Terceira Hipóstase da Santa Trindade, não existe outro
Espírito e não deve, nem pode haver. Nenhum Espírito existe no homem, a consciência de ter em
si o Espírito é vista como um orgulho, uma falta de humildade; a imersão na vida psíquica e
corporal é considerada mais piedosa e mais humilde. Para os teólogos e os dignitários da Igreja, a
vida espiritual superior era frequentemente vista com mais suspeita do que os pecados da vida
psíquica e corporal. Estamos aqui em presença de um problema muito perturbador. A Igreja
perdoava os pecados da carne, era infinitamente indulgente para com as fraquezas da alma, mas
manifestava o mais implacável rigor quanto às tentações, as pretensões, aos voos do espírito. Foi
isso que provocou sua intransigência contra os gnósticos, contra as correntes teosóficas dentro do Cristianismo, sua condenação dos místicos cristãos, sua desconfiança em relação aos criadores
da cultura espiritual, aos filósofos, aos poetas, aos reformadores espirituais. Assim se afirmou um
materialismo e um positivismo cristão original, e o Cristianismo foi proclamado como sendo a
religião da alma, e não do espírito.
Tal foi o exoterismo cristão. Nos sistemas de teologia ele encontrou sua expressão estática nas
doutrinas da graça e da natureza; na doutrina do espírito, como bem exclusivo da graça, e na do
homem e do mundo, como apanágio exclusivo da natureza. Assim os mistérios religiosos da vida
e a experiência se objetificaram, se simbolizaram exteriormente e se materializaram. A vida, a
experiência, o caminho, o espírito, tudo foi transformado em substâncias, em verdades abstratas,
em princípios de metafísica teológica. Deus e a vida divina passaram a ser representados como
coisas inertes e estáticas; já não se via no Cristianismo o mistério da vida espiritual. Minha própria
vida, a essência de minha vida espiritual se exteriorizou como uma substância fixa, como um ser
objetivo.
Nessa desconfiança que a Igreja manifestava em relação ao espírito e a vida espiritual, havia uma
verdade essencial: o orgulho e o contentamento de si são, de fato, pecados hostis à verdade de
Cristo. Existe uma pseudoespiritualidade sem obtenção real do espírito. Nós a encontramos
frequentemente nas correntes teosóficas contemporâneas. Existe uma pseudomística, um
conhecimento espiritual fictício. Existe uma pretensa espiritualidade, que não foi purificada, que foi
perturbada e viciada pelo mundo natural. É essa espiritualidade, não purificada ainda de sua
demonolatria, que existia entre os gnósticos. Existe uma mística na qual os estados psíquicos e
mesmo carnais são considerados como espirituais. É preciso testar os espíritos, pois não
podemos dar fé a todo espirito. Devemos exigir mais do homem espiritual do que do psíquico. A
espiritualidade não pode pretender nada, ela impõe deveres. Existem regiões da vida espiritual
que devem, durante um certo tempo, permanecer fechadas para nós, porque são inacessíveis ao
homem psíquico. Nada é mais lamentável do que pretender uma falsa elevação, uma
espiritualidade contínua, pretensão essa que se faz acompanhar pelo desprezo pelo caminho
simplesmente psíquico e pelos homens psíquicos. A Igreja é santa em sua prescrição de
simplicidade e de humildade. Um simples gesto espiritual não prova ainda a existência de uma
vida espiritual. Nas práticas da Igreja existia uma verdade essencial, mas um sistema teológico
que nega a originalidade qualitativa da vida espiritual e de sua inerência ao homem, não pode ter
pretensões à verdade absoluta e contestável; ele é exotérico e pode ser derrotado. A vida
espiritual é a vitória sobre o pecado. A submissão da natureza pecadora do homem a uma
ontologia imóvel é uma aberração da consciência. O homem se torna digno da vida espiritual na
medida em que ele se comunica efetivamente com ela.
VI
Todos os místicos nos ensinaram o novo nascimento espiritual. O primeiro é o nascimento natural
na posteridade do primeiro Adão, ancestral da humanidade natural, um nascimento ao mesmo
tempo na divisibilidade e na secessão, na necessidade e na filiação genérica. O segundo é o
nascimento espiritual, na geração do novo Adão, Chefe da humanidade espiritual, nascimento a
um tempo na unidade e na liberdade; ele é a vitória sobre a necessidade material e genérica, o
nascimento em Cristo para uma vida nova. No primeiro nascimento tudo é vivido exteriormente, no
segundo tudo é vivido interior e profundamente. O segundo nascimento espiritual, em sua pureza
qualitativa, é conhecido dos místicos; ele foi descrito por eles, que nos traçaram o caminho que
para aí conduz. E o renascimento em Cristo é acessível a todo cristão, e as vias da vida espiritual
lhe são abertas.
O Cristianismo é a religião do espírito, a religião do novo nascimento. “Se um homem não nasce
de novo, ele não pode ver o Reino de Deus [9]”. Assim é que todo cristão deve nascer de novo. “O
vento sopra onde quer, e se ouve o seu ruído; mas ninguém sabe de onde vem, para onde vai.
Assim também acontece com o homem nascido do Espírito [10]”. “Mas vem a hora, e é agora, em
que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espirito e verdade; pois são esses os
adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e é preciso que aqueles o adoram o façam em
espírito e verdade [11]”. E o apóstolo Paulo diz: “E, assim como todos morrem em Adão, todos
reviverão em Cristo [12]”. “Se vocês forem conduzidos pelo Espírito, não estarão sob a lei [13]”.
Mas a revelação cristã da vida espiritual, do novo nascimento, da adoração do Pai em espírito e
verdade, age na humanidade natural, na geração do primeiro Adão, no homem médio; da mesma
forma ela se reveste das formas de um Cristianismo que é ao mesmo tempo espiritual e psíquico.
O Cristianismo, religião que não é desse mundo, sofre e padece humilhação no mundo, e, em
nome da massa da humanidade, a vida espiritual se simboliza e deixa de se realizar. O
Cristianismo, religião de uma verdade que não é daqui de baixo, penetra no mundo em nome de
sua salvação, correndo eternamente o risco de ver o espirito se enfraquecer e se extinguir. Aí
reside seu drama e a origem de seu sucesso, de sua atividade na história, e de seu insucesso na
vida histórica. O Cristianismo deve descer ao mundo natural, ao mesmo tempo em que permanece
sendo uma verdade que não é desse mundo, uma verdade de espírito e de vida espiritual. Toda a
tragédia da humanidade espiritual reside nisso. O espírito não é do “mundo”, o espírito é
precisamente aquilo que “não é desse mundo”; viver em espírito, alcançar a vida espiritual, não
equivale a “amar o mundo” e tudo o que é do “mundo”. Mas o espírito é o “inverso” no mundo, ele
se separa dele e volta a descer sobre ele, ele se simboliza no mundo. O mundo é o símbolo do
que se passa no espírito, o reflexo do abandono de Deus que se realiza no espírito.
Viver no mundo condena todos os homens a partilhar de um destino comum, os associa no
pecado que subsiste mesmo no homem espiritual, os coloca na impossibilidade de se livrar de seu
destino. Existe uma unidade no processo universal, uma unidade dos destinos humanos. “Não
amem o mundo, nem as coisas que são do mundo. Se alguém ama o mundo, o amor de meu Pai
não estará nele [14]”. Assim fala o Apóstolo João, que diz também: “Quem não ama seu irmão
permanece na morte [15]”. “Quem não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor [16]”. Aqui
encontramos toda a difícil antinomia do Cristianismo. O amor para com nosso irmão e não o amor
apenas por nós mesmos nos obriga a viver no mundo, a partilhar do destino desse irmão. O amor
por esse irmão pode nos reduzir a escravidão, à submissão do espírito ao mundo. A Cristandade
viveu essa antinomia trágica, que não possui em si uma saída fácil e simples. Tal é o destino da
humanidade, que a condena à ação recíproca, à atração e à repulsão do espírito e do “mundo”, da
humanidade espiritual e da humanidade natural.
A compreensão espiritual e mística do Cristianismo é mais verdadeira e mais autenticamente real
do que sua compreensão psíquica e objetiva, que é simbolizada pelo plano natural e histórico. A
profundidade íntima do Cristianismo, os mistérios da vida espiritual, se revelam à mística cristã.
Essa profundidade permanece oculta aos sistemas de teologia, à consciência cristã racionalista,
que rejeitam os mistérios da vida divina ou os concebem por analogia com a vida natural. O
Cristianismo é a revelação do mistério da vida espiritual: nele tudo é misterioso, a profundidade da
existência aí se revela enquanto mistério divino; nele tudo é vida, tudo é tragédia vital.
O mistério da Redenção, do Gólgota, é um mistério interior do espírito, ele se realiza nas
profundezas secretas do ser. O Gólgota é um momento interior da vida e do desenvolvimento
espiritual, a passagem de toda a vida pela crucificação, pelo sacrifício. Cristo nasce na
profundidade do espírito, ele percorre seu caminho de vida, morre sobre a Cruz pelos pecados do
mundo e ressuscita. Eis o mistério interior do espírito. Ele se revela na experiência espiritual, todo
homem nascido do espírito o conhece, ele é pintado pelos místicos como sendo um caminho de
vida interior. Cristo deve se revelar na vida interior do espírito, antes de se revelar no mundo
exterior, natural e histórico. Sem a aceitação interior e espiritual de Cristo, as verdades descritas
no Evangelho permanecem fatos ininteligíveis do mundo empírico exterior. Mas o mistério cristão do espírito se objetiva, se exterioriza no mundo natural, se simboliza na
história, Cristo nasceu, morreu e ressuscitou não apenas na profundidade do espírito, mas no
mundo natural histórico. O nascimento de Cristo, sua vida, sua morte sobre a Cruz e sua
ressurreição são fatos autênticos do mundo natural. Aquilo que nos é dito no Evangelho aconteceu
de fato na história, no espaço e no tempo. Mas a realidade daquilo que se realiza na história, no
espaço e no tempo é aqui a mesma que toda realidade do mundo natural, ou seja, uma realidade
simbólica que reflete os eventos do mundo espiritual.
Não devemos entender com isso que os eventos evangélicos não passam de símbolos, enquanto
que os demais fatos são realidades atestadas pela ciência histórica. Mas todos os eventos da
história que têm lugar no mundo natural objetivo, não passam de realidades simbólicas, reflexos
do mundo espiritual. As vidas de Alexandre da Macedônia ou de Napoleão, a emigração dos
povos e a Revolução Francesa não são outra coisa que realidades simbólicas, e não oferecem
mais do que um caráter reflexo.
Mas a vida de Cristo, que se revela no Evangelho, simboliza e reflete acontecimentos do mundo
espiritual, que são de uma importância, de uma unidade e de um valor central infinitamente
maiores do que todos os outros acontecimentos da história universal. Esses fatos evocam a
própria essência da vida espiritual, seu mistério inicial, seu significado divino. Poderíamos dizer
que a história evangélica é uma meta-história, que ela é mitológica no sentido em que o é a
história universal, vale dizer, no sentido em que o mistério interior do espírito se reflete
simbolicamente no plano objetivo e natural.
Uma concepção desse gênero nada tem em comum com o docetismo, que não reconhece a
realidade da vida humana de Cristo, e para o qual seus sofrimentos e sua morte são foram mais
do que aparentes. O docetismo não se liberta da concepção naturalista do Cristianismo, mas
introduz nela um espiritualismo fictício que empobrece e simplifica a plenitude do mistério da vida
espiritual. Para o docetismo e o monofisismo, a natureza espiritual e divina desfrutam de uma
realidade no sentido naturalista e objetivo da palavra, mas a vida da carne e a natureza humana
não passam de aparência e ilusão. Mas nós afirmamos que a vida da carne nesse mundo possui
uma autenticidade simbólica, e que o homem é tão real quanto Deus, não apenas no reflexo
simbólico, como também no mundo espiritual. Todas as heresias do docetismo e do monofisismo
sustentam a oposição do espírito e da carne, enquanto que essa oposição está ligada a uma
naturalização e a uma objetivação do espírito.
Em realidade a carne do mundo é integralmente absorvida pelo espírito e reflete de modo
simbólico a vida do espirito. A concepção espiritual do Cristianismo, enquanto mistério interior da
vida, não rejeita nem elimina a concepção física, objetivada do Cristianismo, mas dá a ela um
sentido interior, ilumina-a e a penetra em maior profundidade. O esotérico não rejeita nem elimina
o exotérico, não luta contra ele, mas aprofunda-o. o Cristianismo esotérico, místico, oculto, não
nega o Cristianismo exotérico, objetivado, exteriorizado; ele não aspira senão a percebê-lo mais
profundamente, e a iluminar o “exterior” pelo “interior”; ele reconhece os graus hierárquicos,
mesmo os graus mais baixos da objetificação, que refletem sempre as realidades autênticas da
vida espiritual. A “carne” do Cristianismo exotérico não é menos real do que o espírito desse
Cristianismo, e a “carne” e o “espírito” dessa consciência cristã refletem simbolicamente e na
mesma medida as realidades autênticas da vida espiritual, do mistério divino da vida. O que
acontece no mundo espiritual é de todos os tempos, de todo o espaço, mas se reflete
simbolicamente no tempo e no espaço, na matéria. É por essa razão que na história do
Cristianismo o material e o carnal adquirem um significado sagrado. O significado sagrado é
precisamente o significado simbólico. A carne santa existe enquanto carne simbólica, mas ela não
é a matéria, a realidade substancial no sentido do realismo simplista.
Um Cristianismo espiritual, místico, é o mais distante da atitude dos iconoclastas, que negam o
reflexo simbólico do mundo espiritual no mundo natural; um Cristianismo profundo, místico,
entrevê nos objetos materiais o símbolo do mundo espiritual e está em perfeito acordo com o que
afirma, a respeito disso, a consciência da Igreja. Todo o culto cristão, com sua “carne”, é o reflexo
autêntico, real e simbólico do mistério da vida espiritual e não pode ser rejeitado pelo Cristianismo.
Existe um certo tipo de Cristianismo “espiritual”, nascido no terreno do Protestantismo (por
exemplo, em Schleiermacher), que ignora o simbolismo realista e não conhece mais do que um
simbolismo idealista e psicológico, e que não contribui para a união, mas à desunião. Trata-se de
um dos aspectos do Cristianismo naturalista que, opondo o “espírito” à “carne”, coloca-os sobre o
mesmo plano. O verdadeiro Cristianismo do espírito conhece uma espiritualidade concreta, capaz
de conter em si todos os graus hierárquicos das simbolizações e das encarnações, que lhes dá
um sentido e os aprofunda, que não recusa nem nega nada. O espiritualismo que se
convencionou chamar de Cristianismo “espiritual”, que gerou diversas seitas que trazem esse
nome, não passa de um espiritualismo abstrato e monofisita, uma mutilação, uma amputação do
Cristianismo, pois vive de negações e recusas.
Os místicos cristãos mais profundos, que se elevaram até o Cristianismo do espírito, jamais foram
cristãos “espirituais”, no sentido limitado e sectário desse termo. Maître Eckart, um dos maiores
místicos cristãos, que interpretou o Cristianismo como mistério do espírito, como uma via espiritual
interior, permaneceu dominicano e católico fervoroso, reconhecendo todos os graus concretos da
simbolização e das encarnações. A mística teve uma profunda influência sobre Lutero, que se
manifestou igualmente nas seitas e em determinados movimentos do Cristianismo. O mais
audacioso dos místicos alemães, Angelus Silesius, para quem o Cristianismo era evidentemente
um mistério do espírito, que aspirava ao supra-divino, e a quem devemos as palavras: “Sem
o homem, Deus não poderia existir nem por um momento”, era um católico fanático que jamais
rompeu com o simbolismo e as encarnações do Cristianismo da Igreja.
VII
A vida espiritual não implica a unidade abstrata, indeterminada. Nela se revela o concreto, ou seja,
a unidade qualitativa. A compreensão monista da espiritualidade, tal como aparece na filosofia
religiosa da Índia e em certas formas do idealismo alemão (como na religião do espírito de E.
Hartmann), é uma heresia monofisita: ela nega a existência da natureza humana e afirma somente
a natureza divina. Mas na vida e experiência espirituais, nos são dadas duas naturezas: Deus e o
homem. o mundo espiritual é precisamente o lugar de encontro das naturezas divina e humana,
esse encontro constitui o fenômeno original. Na profundeza da vida espiritual se desenrola o
drama religioso das relações entre Deus e o homem. Não existe vida religiosa sem Deus, apenas
com a natureza humana. A qualidade da vida religiosa não existe no homem a menos que haja
alguma coisa a aprofundar, para onde se elevar, a menos que exista uma natureza divina superior.
O homem imerso em sua própria natureza estaria privado de vida espiritual. Por outro lado, se só
existisse a natureza divina, se Deus não possuísse outra natureza além de Si mesmo, não existiria
um fenômeno original na vida espiritual e tudo mergulharia numa indiferença abstrata. O ser divino
deve se exteriorizar para penetrar em seu outro Si-mesmo, no ser humano.
Na espiritualidade
concreta, a personalidade humana não é nem limitada, bem recusada, ela não se eclipsa na
unidade indeterminada. Duas naturezas, Deus e o homem, subsistem na profundidade mesma da
vida espiritual.
A personalidade humana não mostra uma individuação do espírito efetuando-se pela matéria. A
individuação, a eclosão da personalidade, se realiza pelo próprio espírito, nas profundezas da vida
espiritual, sendo uma propriedade da vida espiritual. Na vida espiritual, os seres, as
personalidades, agem e manifestam suas energias. A vida espiritual é a arena na qual se
encontram os seres concretos. Não existe aí nenhuma abstração, nenhum princípio abstrato, mas
unicamente a vida. Os seres, e não as substâncias, se revelam na vida espiritual e a revelação
cristã é a revelação da vida espiritual dos seres, e não a dos princípios abstratos dos seres. No
Cristianismo só existem os seres que pertencem aos diversos graus hierárquicos. Os seres, as
personalidades humanas com seu destino eterno são postos sem intermediário na experiência
espiritual. Ora, não é possível elaborar doutrinas ontológicas abstratas e metafísicas referentes à
natureza dos seres e da personalidade.
O mistério da personalidade humana não pode ser expresso senão na linguagem da experiência
espiritual, e não na da metafísica abstrata. A metafísica pluralista é também abstrata, também
racionalista e corresponde tão pouco à vida do espírito quanto a metafísica do monismo; o
espiritualismo, em seu gênero, não é menos defeituoso do que o materialismo.
Duns Scot
protestou contra a doutrina de São Tomás de Aquino relativa à individualidade e à imortalidade da
alma; ele provou que essa doutrina desembocava na negação da imortalidade e da existência da
individualidade humana. Porém, a doutrina escolástica de Duns Scot, que sob certos aspectos era
mais refinada do que a de São Tomás, era passível de objeções igualmente bem fundadas.
O mistério da revelação cristã, referente à personalidade humana e ao seu destino individual, não
pode ser expresso nem pela metafísica escolástica de São Tomás de Aquino, nem pela metafísica
pluralista de Leibnitz com sua Monadologia, nem pela metafísica monista de Hegel ou de
Hartmann. Não são os escolásticos, nem os metafísicos, mas sim os místicos que expressaram o
mistério da vida teândrica, os mistérios das vias e dos destinos. A experiência dos santos nos
fornece um conhecimento mais profundo da personalidade humana, do que toda a metafísica e a
teologia reunidas. Todas as tentativas feitas com vistas a fundamentar a afirmação da vida futura
sobre a substancialidade da alma, são pouco persuasivas e não chegam a nos convencer. Não
existe aí mais do que um ponto de vista naturalista dos mistérios da vida espiritual, e a vida
escapa a essa forma de pensamento. A personalidade humana é imortal, não porque a alma
humana seja substancial, ou porque a ideia de personalidade exija a imortalidade, mas porque
existe uma experiência espiritual da vida eterna, porque a vida espiritual é uma vida divino-humana,
porque Cristo existe como fonte da vida eterna. Ela se prova e se demonstra pela própria
manifestação da imortalidade na vida espiritual. A imortalidade é uma categoria espiritual e
religiosa e não naturalista e metafísica. Ela não é uma propriedade natural do homem, ela consiste
na aquisição da vida espiritual, no novo nascimento em espírito, no nascimento em Cristo, fonte da
vida eterna. A imortalidade do homem não é uma continuidade infinita de sua natureza metafísica:
ela é um renascimento para uma vida superior na raça do novo Adão. Ela é a vida eterna que
venceu a morte. A imortalidade, a vida eterna, é a revelação do Reino de Deus, e não a natureza
metafísica do ser. Da mesma forma, o Cristianismo não ensina a imortalidade da alma como o fazem as diversas formas de metafísicas naturalistas, mas sim a ressurreição, que é um
acontecimento da vida espiritual, do mundo espiritual que triunfa sobre a corruptibilidade e a
mortalidade.
A Igreja cristã desmascarou o engano de todo monofisismo, vale dizer, o erro e a deformação da
experiência espiritual que não deixa lugar para o mistério das duas naturezas, a divina e a
humana, e que se exprime de modo racionalista pelas doutrinas monistas. A unidade-dualidade
das duas naturezas, que não podem ser confundidas, é o próprio mistério da vida religiosa e o
fenômeno original da experiência espiritual; e isso dificilmente pode ser expresso por uma
metafísica racionalista, que sempre se arrisca a cair num monismo, num dualismo ou num
pluralismo abstratos. O mistério da vida eterna das duas naturezas é o mistério de Cristo, o Deus-homem. Oos maiores escolásticos foram incapazes de exprimir esse mistério numa linguagem de
teologia e de metafísica substanciais. A consciência grega, pagã, não ensinava mais do que a
imortalidade dos deuses, a do princípio divino; a imortalidade poderia ainda ser o apanágio dos
heróis, dos semideuses, mas nunca do comum dos homens. Encontramos aqui uma expressão
autêntica da verdade. O homem natural, a mônada psico-corporal, não usufrui da imortalidade
como de uma qualidade que lhe seja inerente. Somente a vida espiritual merece a imortalidade,
somente o espírito possui a qualidade da vida eterna.
A imortalidade é a penetração na vida espiritual e sua obtenção, a restituição do espírito ao
homem que dele se separou. A fonte da imortalidade está em Deus e não na natureza, e não se
pode conceber a imortalidade fora da vida em Deus, fora do divino. O caminho da vida eterna e
imortal nos foi dado em Cristo. A vida eterna é o Reino de Deus, e sem ele, sem o Espírito Santo,
não existe imortalidade, nem vida eterna. No Reino de Deus se revela a imortalidade do homem,
inacessível à consciência pagã e à antiga consciência judaica. O espírito é restituído ao homem, e
esse cessa de ser uma mônada fechada e psico-corporal; e a restituição do espírito, a penetração
na vida do espírito não implica absolutamente uma supressão ou uma mortificação da alma e do
corpo, mas antes sua transfiguração, sua iluminação, sua espiritualização, sua absorção na vida
superior do espírito. É por isso que o Cristianismo ensina a ressurreição da carne. Para
compreender esse mistério não há necessidade de uma metafísica naturalista, não é necessário
ver uma substância na carne e no corpo. A “carne” é uma categoria religiosa, vale dizer, espiritual,
e não naturalista. E as tentativas feitas para exprimir o mistério da carne e de sua ressurreição em
termos de metafísica naturalista são sempre exotéricas; elas subordinam o mistério do
Cristianismo à natureza material, intimamente ligada às representações coletivas do povo. O
mistério da ressurreição da carne é um mistério espiritual e concreto, que não pode ser traduzido
senão pela vida, ou seja, pela experiência espiritual. O naturalismo e mesmo o materialismo dos
sistemas de teologia não demonstram senão uma coisa: é que em certos graus da vida espiritual o
espírito é concebido como sendo transcendente ao homem, e esse é considerado como um ser
natural, psico-corporal.
A distinção fundamental estabelecida entre o espírito e a natureza, como entre realidades e
ordens qualitativamente diferentes, não implica a negação do cosmo, a separação do homem
espiritual e a da vida cósmica. O cosmo, o mundo divino, a natureza divina, não se revelam senão
na experiência espiritual, na vida espiritual. O encontro com o cosmo não acontece senão no
espírito, e o homem não é separado dele, mas sim unido a ele. a espiritualidade concreta
comporta em si a plenitude da vida cósmica, todos os graus hierárquicos do cosmo. É somente no
mundo espiritual interior que o cosmo é dado em sua vida interior, em sua beleza. No mundo
natural, o homem isolado considera como cosmo como algo que lhe é exterior, impenetrável,
estranho, como um objeto que pode ser submetido à ação técnica e ao estudo das ciências
matemáticas e físicas; ele vê no cosmo sua submissão aos elementos inferiores e sensíveis.
A contemplação da beleza e da harmonia na natureza constitui já uma experiência espiritual, uma
penetração na vida interior do cosmo, que se revela no espírito. O amor pela natureza, pelos
minerais, vegetais e animais é já uma experiência espiritual, uma vitória sobre a desunião e o
“extrinsecismo”. A doutrina mística e teosófica da natureza, tal como a encontramos em Paracelso,
Jacob Boehme, Franz Baader e em especial em Schelling, considera a natureza em espírito, como
a vida interior do espírito, como a inserção da natureza no espírito e do espírito na natureza. O
cosmo é concebido como um certo grau do espírito, como uma simbólica de sua vida interior. A
naturalização do espírito em Boehme não passa da contrapartida da absorção da natureza pelo
espírito. Os elementos da natureza e do cosmo são também elementos psíquicos do homem, que
estão unidos no mundo espiritual. O microcosmo e o macrocosmo se revelam na vida espiritual,
não na divisibilidade e no “extrinsecismo”, mas na unidade e na penetração recíproca.
A perda do paraíso pela humanidade consiste na sua separação do cosmo, da natureza divina, e a
formação de uma natureza exterior, estranha, da dissensão e da submissão. A obtenção do
paraíso é o retorno do cosmo ao homem e do homem ao cosmo. Ela só se realiza na vida
espiritual real, no Reino de Deus. Essa experiência começa com a experiência do amor, na
contemplação da beleza. A natureza exterior é a ossificação do espírito. Ora, o cosmo é a vida, e
não um conjunto de objetos materiais endurecidos e de substâncias inertes.
O caráter “acósmico” da espiritualidade abstrata é totalmente estranho ao Cristianismo, que
conhece uma espiritualidade concreta que contém a plenitude do mundo divino. O“mundo”,
tomado no sentido evangélico, o mundo para com o qual devemos ter inimizade, não representa a
criação divina, o cosmos, que nós devemos, ao contrário, amar, e com o qual devemos nos unir. O
“mundo”, a “natureza” constituem, nesse caso, a dormência por causa do pecado, a ossificação
por causa das paixões, a submissão aos elementos inferiores, a deformação do mundo divino, e
não o cosmo em si.
VIII
No decurso da luta que se efetua no mundo natural, em nome da vida espiritual superior, em nome
de Deus, do amor, da liberdade, do conhecimento, se levantam “andaimes”: os meios empregados
para atingir as realidades e os bens do espírito são muitas vezes exaltados até a dignidade de um
fim em si. Esses “andaimes” constituem precisamente a maior fonte da grande tragédia da vida
espiritual.
Na história do mundo, nada jamais se realizou no sentido real e ontológico da palavra, porque os
procedimentos de que se dispunha para alcançar a vida espiritual dissimulavam, de certa forma,
seus fins. A humanidade foi aprisionada dentro dos muros da vida espiritual, sem jamais poder
alcançar essa mesma vida. Nos caminhos que levavam a Deus foram utilizados meios ímpios: para a realização do amor, apelou-se para o ódio e a animosidade; para alcançar a liberdade,
recorreu-se à violência e ao constrangimento. Nas civilizações, nos Estados, nos costumes, na
organização exterior da Igreja, essas coisas triunfaram mediante procedimentos inteiramente
opostos aos fins da vida religiosa, ao mundo divino; o ódio e a violência foram justificados,
invocando-se os objetivos supremos que eram propostos. Deus foi esquecido em favor do edifício
erigido para atingi-lo. Odiou-se em nome do amor, constrangeu-se em nome da liberdade;
mergulhou-se na matéria em nome dos princípios espirituais.
Na organização exterior da Igreja, nos cânones e nas doutrinas de teologia, Deus estava, de certa
forma, relegado ao segundo plano, e frequentemente chegava mesmo a desaparecer; na
organização do estado, era a liberdade que periclitava; nos costumes e tradições, enterrava-se o
amor; nas ciências, e nas academias criadas por elas, extinguia-se o ardor inflamado pelo
conhecimento; o próprio objetivo do conhecimento foi perdido de vista. As “muralhas” da vida
espiritual a mascaravam por toda parte e garantiam para si uma existência independente. Os
procedimentos empregados para atingir uma vida espiritual, os instrumentos que deveriam
salvaguardar seus princípios, se transformaram em obstáculos à sua realização. Símbolos
empedrados substituíram-se à realidade. O mundo natural, reino de César, triunfou, por meio de
seus procedimentos de luta, por sua violência e pela divisão, sobre o mundo espiritual, sobre o
Reino de Deus, submetendo-o e tornando-o semelhante a si mesmo. A proposta passou a ser
alcançar o Reino de Deus, não espiritualmente, mas materialmente; e por fim esqueceu-se dele no
banal da vida, deixou de haver interesse nele, perdeu-se a faculdade de percebê-lo.
Leon Tolstoi, malgrado o racionalismo limitado de sua consciência religiosa, compreendeu essa
tragédia e sentiu profundamente o quão grande era a desproporção que existia entre os
procedimentos e os fins, entre os caminhos que eram trilhados e o sentido da vida, entre o que se
justificava na existência e o que autorizava essa justificação. A organização do mundo e da
humanidade, baseada no esquecimento da vida do espírito e sobre a conversão dos princípios
espirituais em instrumentos dessa organização, jamais pôde conduzir à vida espiritual. O espírito
não pode ser submetido a se transformar em “instrumento”, pois isso não só é inútil, como é
oposto e contrário à sua natureza.
Na vida espiritual, não pode haver oposição entre os meios e os fins da vida; essa oposição só
existe no mundo natural. É uma ruptura causada pelo mal, e não podemos justificá-la invocando o
pecado da natureza humana e a necessidade dessa desunião para a vitória sobre o pecado.
Nessa justificação, existe um erro e uma hipocrisia, que constituem um obstáculo à aquisição da
vida espiritual.
A ascensão a uma vida espiritual constitui-se numa identificação entre os meios e os objetivos da
vida; os procedimentos que permitem realizar o objetivo divino da vida, o amor, a liberdade, o
conhecimento, são precisamente o divino, o amor, a liberdade, a luz do conhecimento do ser. Os
claustros devem ser derrubados, a fim de liberar o caminho que conduz à vida espiritual. Pois essa
permanece inacessível ao homem, não apenas em razão do pecado e de sua sujeição à natureza
inferior, mas por causa das muralhas tão pouco de acordo com os princípios religiosos que elas
deveriam preservar. Uma vida religiosa fundada sobre o respeito aos mandamentos, uma ciência
acadêmica, uma santificação de costumes pagãos, são tanto enganos e artifícios, como
obstáculos sobre o caminho da vida espiritual e do conhecimento da realidade divina.
O mundo dos símbolos refletidos mascara o do espírito, aquele da própria realidade, e a
simbolização perde toda conexão com o que ela deveria representar. O mundo natural é o símbolo
do espírito, mas corre o risco de ser tomado pela própria realidade, ele pode se enrijecer e se
materializar. Dessa forma, o centro de gravidade da vida e, o que é mais grave, o da vida religiosa,
se transporta para o mundo material petrificado que fôra simbolicamente santificado. O homem
deixa de ser absorvido pelo infinito do mundo espiritual, e é rejeitado à limitação do mundo natural
e material, colocando aí o centro de sua vida e se unindo a ele por laços invisíveis.
Ele cria para si um positivismo igrejeiro que desconfia e teme o mundo espiritual. Para esse
positivismo, o outro mundo não representa mais do que um meio que permite consolidar e sujeitar
o mundo aqui de baixo; pois ele teme o afrouxamento e o amolecimento dessa ordem natural, ele
teme toda revolução do espírito. Ele não crê que possam se desenvolver eventos no mundo
espiritual que demandem uma nova simbolização, uma nova “carne”. Os positivistas reconhecem
como sendo absoluto e imutável o simbolismo do espírito, consideram a antiga simbolização como
sagrada, pois para eles o espírito é imóvel e estático, ele é substância e não vida.
Mas o antigo simbolismo da carne pode envelhecer, os antigos procedimentos e instrumentos da
vida espiritual podem se tornar sem uso, pois a natureza do espírito é dinâmica. Então se torna
inevitável a busca de um novo simbolismo para tornar mais conformes os meios de aproximar o
simbolismo das realidades mesmas do espírito, o próprio Deus foi concebido como finito pelo ódio
infinito da humanidade pecadora. Esse ódio se reflete no simbolismo do finito.
Perturbações terríveis, revoluções monstruosas, manifestações do mal desconhecidas até então
foram enviadas ao mundo cristão com a única finalidade de que esse mundo pecador, tendo traído
tudo o que é sagrado, se encaminhe finalmente para a realização de uma vida espiritual
verdadeiramente livre. Os muros de separação e os claustros desabam, tudo se afrouxa e
amolece no mundo natural e histórico, e no seu simbolismo endurecido. E esse é um momento
singularmente propício à prática séria e austera da vida cristã, à aproximação dos processos da
vida e de seus fins, do simbolismo e das realidades. Sob o império de um cataclisma, realiza-se na
história uma ascese e uma purificação sem as quais é impossível haver vida espiritual, nem para o
indivíduo, nem para a sociedade como um todo. O destino do Cristianismo depende disso, pois um
novo tipo de espiritualidade deverá nascer no mundo.
Ou bem haverá uma nova época para o Cristianismo, e um renascimento cristão se firmará, ou
bem o Cristianismo está condenado a perecer, coisa que não podemos admitir nem por um
instante, pois as portas do Inferno não podem prevalecer contra ele. O Cristianismo não pode
retroceder ao estado que precedeu a catástrofe. A imagem do homem se esfumou no turbilhão
que se apossou do mundo, e sua dignidade perdida deverá ser devolvida. Mas a dignidade do
homem não é determinada pela sua situação, nem pelo seu poder no mundo natural, mas por sua
espiritualidade, ou seja, pela imagem divina que existe nele, pelo Eros que o orienta para Deus,
para a vida em verdade, justiça e beleza, para a vida espiritual. Pois essa vida espiritual é
precisamente a vida em Deus, vale dizer, na verdade, na justiça, na beleza, e não no isolamento
natural das almas e dos corpos. Deus é imanente ao espírito, mas é transcendente em relação ao
homem psico-corporal, ao mundo, ao mundo natural. Doravante a humanidade cristã deverá
preferir Deus às cidadelas erigidas no mundo para proteger os princípios essenciais da vida, mas
que na realidade não fizeram senão dissimulá-los.
IX
A vida espiritual é infinita; nela, a diversidade qualitativa se revela; ela é mais vasta daquilo que
se convencionou chamar canonicamente de “espiritual” no Cristianismo. Podemos identificar o
espírito ao Espírito Santo, a Terceira Hipóstase da Trindade. O espírito é a esfera na qual de ligam
o divino e o humano, ele abarca todas as aspirações do homem para Deus, toda a cultura
espiritual do homem. A graça do Espírito Santo, no sentido teológico, é uma modalidade particular
da vida espiritual, sua aspiração suprema. A revelação, a profundidade extrema dessa vida
espiritual, é a revelação do Espírito Santo, e a esperança numa vida espiritual futura, que
transfigurará o mundo natural, e a esperança numa ação mais eficaz do Espírito Santo.
Mas a vida espiritual se revela por graus, e com uma diversidade qualitativa. Dela fazem parte
toda a vida intelectual, moral, artística da humanidade, toda a comunhão no amor. A natureza do
Espírito Santo, dogmaticamente falando, foi sempre revelado pela consciência da Igreja de forma
insuficiente. Tanto os Padres, como os Doutores e a consciência religiosa, não chegaram a
superar a ideia de subordinação na doutrina da Terceira Pessoa da Trindade. Isso se aplica mais à
teologia católica. Talvez tenha sido assim no período em que o Cristianismo realizou seu primeiro
esforço no seio da humanidade natural. Entretanto, a revelação incompleta da natureza do Espírito
Santo atesta que a profundidade abissal da vida espiritual é divulgada no Cristianismo de forma
imperfeita, que o espírito ainda se encontra encarcerado na alma, que não existe uma consciência
de que toda vida espiritual, toda cultura autêntica, está enraizada em Deus e no Espírito Santo.
É no Espírito Santo que Deus se torna imanente ao mundo e ao homem, pois o Espírito está mais
próximo do homem do que Deus Pai, e mesmo que Deus Filho, ainda que a doutrina teológica
referente a ele permaneça menos clara. Somente no novo nascimento se revela a natureza
autêntica da vida espiritual, sua natureza não subjetiva e não psicológica. O homem natural possui
rudimentos de vida espiritual, mas eles estão encravados na alma e seu sentido permanece
obscuro. Esse homem mergulhado no elemento racial, que vive acima de tudo da “carne” e do
“sangue”, possui também uma vida religiosa e pode ser salvo. Mas a profundidade da vida
religiosa não se revela em seu Cristianismo tradicional, pois o espírito é oposto às raças e aos
costumes das raças. A santificação simbólica das tradições raciais não representa ainda a
revelação autêntica da vida cristã. E aquele que sustenta acima de tudo a santificação de seus
costumes, de sua “carne” e de seu “sangue”, não é ainda um homem espiritual.
Subordinar o infinito do espírito ao finito do mundo natural equivale a aprisionar o espírito. No
Cristianismo hereditário, o homem considera ainda acima de tudo a carne e o sangue de sua
pessoa, de sua família, de sua nação, de seu Estado. Ele atribui um valor à santificação e à
justificação religiosas de seus costumes tradicionais. Mas o espírito consiste na existência e não
num conjunto de usos, costumes e hábitos. A vida no espírito consiste precisamente em se liberar
dessas coisas e penetrar na existência. O cristão “por tradição” deseja antes de tudo que sua
“carne” e seu “sangue” sejam reconhecidos como sagrados. Uma vida espiritual, sem a premissa
de raças e costumes, lhe parece abstrata, parece ser um abandono da vida. Ele encara a vida
espiritual e o homem espiritual do mesmo modo que um positivista. Esse aprisionamento do
espírito infinito na “carne” e no “sangue” do mundo natural, essa sujeição do divino ao elemento
racial, constituem precisamente uma forma de positivismo na vida religiosa.
É assim que se erige em absoluto o relativo e o temporal de uma dada simbologia, vista como
única e definitiva. É assim que a monarquia foi reconhecida como sagrada e que a vida da Igreja
lhe foi submetida; e esse é apenas um dos casos em que o Cristianismo se tornou pesado,
opressivo – e atolou. Ele deixou suas asas para se tornar rastejante, e sofreu a dominação desse
mundo natural. Ele se recusou a reconhecer no homem um ser espiritual, e a vida do espírito, com
seu horizonte infinito, fechou-se diante dele. Essa vida ficou reservada aos santos, e todos os
demais homens se viram condenados a permanecer como homens naturais, pertencentes a tal ou
qual linhagem, que, de seu nascimento até sua morte, não santificavam mais do que
simbolicamente sua carne e seu sangue.
O positivismo religioso é tanto um entrave ao renascimento espiritual da humanidade quanto o
positivismo materialista. Ambos escravizam o espírito humano. E a grande revolução espiritual que
deverá se realizar no mundo deverá libertar o homem dessa escravidão da carne e do sangue,
dessa opressão da coletividade. Os grandes homens de espírito esperaram essa revolução, eles
tinham uma visão profética. Sua esperança era a do advento do Espírito no Cristianismo. A
elevação à espiritualidade, à libertação espiritual, é um caminho árduo; é o caminho da purificação
e da inspiração criadora. Esse caminho pressupõe o ascetismo e o sacrifício, não somente
individuais, como supraindividuais, sociais e históricos. Vivemos em uma época onde tudo chama
o mundo cristão a essa ascese e a esse sacrifício, onde sonhar com a antiga santificação da carne
e do sangue equivale a lhe atribuir a primazia sobre a verdade de Cristo.
O fato de que uma vida espiritual nasce em mim, e que eu busco a Deus, que eu aspiro ao divino
e que O amo nessa vida, constitui o fenômeno supremo, a própria justificação da existência. Todas
as forças do mundo não serão capazes de me convencer de que isso é uma ilusão, uma
autossugestão, e não a vida. Pois trata-se da única via, sem a qual tudo não passa de pó, ficção e
não-ser. Não vivemos num mundo real, mas num mundo no qual o ser e o não-ser se confundem,
e nosso despertar espiritual é um despertar para o ser, para a existência autêntica.
X
A tradição do platonismo é mais favorável à filosofia do espírito e da vida espiritual, do que a
tradição aristotélica. A escolástica, na pessoa de seu mais ilustre representante, São Tomás de
Aquino, aproveitou a doutrina de Aristóteles para afirmar que o homem e o mundo pertencem
exclusivamente à ordem natural, e se opõem ao sobrenatural. Segundo ele, ambos foram criados
por Deus, mas não têm raízes em Deus. As energias divinas não agem diretamente na criação. A
ação de Deus sobre o mundo se opera pela via da graça, por vias oficiais estabelecidas pela
Igreja. Deus é concebido como ato puro, nele não existe potência. A potência é uma imperfeição
do ser criado, uma prova de sua confusão com o não-ser.
Assim se criou um sistema que encarcera e isola o mundo natural, no qual a natureza espiritual do
homem é negada. A patrística oriental, em sua expressão clássica, conservou a tradição platônica.
Dessa forma, foi mais fácil para ela reconhecer que o homem e o mundo estão enraizados em
Deus, nas ideias divinas, e reconhecer que existem não apenas um mundo e um homem
terrestres, mas também um mundo e um homem celestes. Se o aristotelismo é desfavorável à
concepção simbólica do mundo, o platonismo, ao contrário, pode ser seu fundamento.
Para ele, todo o terrestre não passa de um símbolo do espiritual, do mundo celeste. O homem é a
um tempo um ser terrestre e celeste, natural, sobrenatural e espiritual; ele é o ponto de
intersecção dos dois mundos. A espiritualidade e a vida espiritual são inerentes à natureza
humana, na medida em que ela é uma imagem da natureza divina. A vida espiritual e o espírito
são imanentes e não transcendentes ao homem. A consciência cristã não está necessariamente
sujeita a certas formas do pensamento antigo, que geraram a metafísica naturalista e a teologia. E
a filosofia do espírito pode, assim, ser uma filosofia cristã autêntica.
[1] Panlogismo: pressuposição teórica compartilhada por certas doutrinas, tais como o
leibnitzianismo ou o hegelianismo, segundo as quais o mundo é inteiramente cognoscível pelo
saber humano, em decorrência da organização intrinsecamente racional da realidade objetiva.
[2] A consciência grega não considerava a imortalidade da alma como pertencendo naturalmente
ao homem; somente os deuses, os heróis e os demônios desfrutavam disso. Somente mais tarde
a alma foi reconhecida como uma parte integrante do homem, mas, mesmo na consciência cristã,
só se reconhece o espírito em Deus. Somente os místicos veem o espírito no homem. No
romantismo, o espírito está encarcerado na alma.
[3] I Coríntios 2: 14-15;
[4] I Coríntios 15: 44.
[5] João 14: 20.
[6] Gálatas 2: 20.
[7] Entendemos por ecumenismo uma catolicidade (soborni) na qual se manifesta a ação do
Espírito Santo.
[8] João 14: 6.
[9] João 3: 3.
[10] João 3: 8.
[11] João 4: 23-24.
[12] I Coríntios 15: 22.
[13] Gálatas 5: 18.
[14] I João 2:15-16.
[15] I João 3: 14.
[16] I João 4: 8.
Fonte:
Prece de Jesus
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