II - A Vida no Espírito
A
ação espiritual
fundamento de nosso caminho - fundamento que será clarificado tanto para
aqueles que apenas estão no início, quanto para aqueles que já tomaram a
resolução de continuar a caminhada até o final - é a descoberta de um
amor verdadeiro e ardente a Deus, de uma fé livre que não tenha
outra preocupação que somente Deus, de um abandono confiante à
vontade de Deus, de uma disponibilidade constante em renegar-se a
si mesmo. Este fundamento é, na realidade, o conteúdo dos mandamentos de
Deus, é o evangelho transformado em regra de vida.
Esses quatro pontos nada mais são do que condições que
necessária e integralmente devem fazer parte de nossa existência antes de
iniciar o caminho. Contudo, é necessário que nossa alma, de qualquer modo,
esteja aberta a eles e deles provemos o desejo. Em si, porém, este
fundamento não basta para preparar nosso espírito, nem para garantir um
caminho livre de perigos. Alcançar o fim do caminho, atingir o reino de
Deus e a união com Deus, reserva ainda numerosas dificuldades.
Por isso, é oportuno apoiar neste fundamento uma ação que
lhe seja conatural e que se regenere continuamente. Uma ação que se
realize no homem por meio de Deus, uma ação enfrentada através das
tentações, as provas e as muitas dores que interna ou externamente atingem
o homem, uma ação que se complete durante todo o percurso por meio da
penitência, da submissão e do abandono da própria vontade em Deus. Esta
ação põe à prova a força e a solidez do fundamento, delas reforçando a
capacidade de influência e delas ampliando a base. Por acaso podemos
esquecer o modo pelo qual Cristo exprimiu o amor que o fez aceitar os
sofrimentos, e como ele aprendeu a obediência através do sofrimento,
obediência até a morte? Como, ainda uma vez, seu total abandono foi posto
à prova quando exclamou do alto da cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste? (Mc 15,34)? Podemos esquecer o modo como ele exercitou a
negação de si nos sofrimentos voluntários do Getsêmani: Mas não se faça
a minha vontade, e sim a tua (Lc 22,42), até o final do Tudo está
consumado (Jo 19,30)?
Vê-se, com clareza que, durante toda a sua vida terrena,
Cristo não procurou assentar-se à direita do poder do Pai, mas sim, dele
realizar a vontade. Por isso, enquanto estamos a caminho, não nos é lícito
fixar o olhar em eventuais favores e dons de Deus, para consegui-los. Nem
mesmo os menores favores devem se tornar objeto de exigência em nossa
oração. O que nos é pedido é fazer com todo o coração a vontade de Deus e
fazer dela a finalidade de nossa ação, com toda submissão e
reconhecimento, quaisquer que sejam as situações que Deus permite e as
circunstâncias que escolhe para nós, confiantes por estarmos sob sua
proteção, aconteça o que acontecer. Sentir uma grande atração pela
perfeição cristã: disso é que precisamos. É a única coisa agradável a
Deus, mas deve ser uma atração conforme ao seu desejo e às modalidades por
ele escolhidas.
A perfeição não é o objeto de um desejo projetado num
futuro obscuro, mas uma necessidade do espírito, no exato momento em que
se o vive. No hoje, nós possuímos a nossa vontade, as nossas intenções e
podemos oferecê-las a Deus; já o futuro, é Deus que o possui totalmente:
não dispomos absolutamente dele e por isso nada podemos oferecer-lhe. Quem
acredita poder oferecer seu futuro a Deus é semelhante a quem oferta um
capital fictício. Nada conhecemos do futuro; não entra na esfera de nosso
poder e, espiritualmente, não podemos discerni-lo. O instante que agora
vivemos: eis o que possuímos da existência.
No instante presente tomamos consciência de nós mesmos,
podemos discernir com clareza os nossos defeitos, mas também as
potencialidades não usufruídas. É também no presente que podemos
contemplar, com base naquilo que verdadeiramente há em nós, a vontade de
Deus relativa àquilo que nos é pedido fazer. A perfeição cristã se
concretiza em nós, no hoje, em função da realidade que percebemos: ela, de
fato, está em nós e, se quisermos, podemos vê-la com a mesma clareza com
que agora vemos o céu sobre nós e a terra sob nós... Pelo contrário, se
dermos um passo atrás para examinar nosso passado, encontramo-lo
obscurecido e disperso como por um vento que nos atinge e ultrapassa, sem
que possamos segui-lo ou saber para onde foi. Se fixarmos lá nossa
imaginação, afundamos em nossos pensamentos, vamos ao encontro de nosso
fracasso ou, pelo menos, não alcançamos a perfeição. E se buscamos possuir
o futuro, nos aprisionamos na previsão de pensamentos nebulosos e obscuros
que nos prejudicam a visão e impedem-nos de discernir a perfeição que Deus
deseja para nós.
Assim, nossa única esperança está na realidade colocada
diante de nós com a finalidade de uma ação consciente; de fato, se
perdemos em nós a delicadíssima percepção do presente e por indolência
deixamos escapar a ocasião de agir no momento presente, o único oportuno,
é a vida inteira que foge de nós.
Todavia, as nossas ações, mesmo se encerram amor, fé e
negação de si, abandono à vontade de Deus, de per si não nos levam a um
estado de santidade nem nos predispõem a algum dom e, nem mesmo, podem
fazer-nos entrar num estado de plena segurança e paz.
E então, quem pode nos dar todos esses dons? Deus! O Deus
que não cessa de guiar a alma dócil nos caminhos difíceis e nas provações,
de obscuridade em obscuridade, entre as inquietações provocadas que,
aparentemente, não têm nenhum sentido. De tal modo, fazendo-a enfrentar a
realidade e aceitar provas dolorosas, guia-a e a faz atravessar o drama do
mundo e a hostilidade dos malvados; deste modo, Deus a inicia naqueles
dons que não chamam a atenção e numa vida de grande espiritualidade.
Os dons de Deus não estão nas mãos dos anjos, nem nas
alturas dos céus. Podemos encontrá-los no confronto diário que a cada dia
a carne, o mundo e os homens nos impõem. Por si só este confronto não
atrai o dom de Deus, mas é por causa de Deus que nos abstemos das culpas
da carne e enfrentamos o mal que há no mundo e no homem.
O dom da lucidez espiritual brota somente das trevas
obscuras que o espírito atravessa na inquietação e no atordoamento das
provas, às voltas com a realidade em que está encoberta a verdade. A
alegria verdadeira e a perseverança fiel têm como fonte escondida aqueles
sofrimentos e dores que o homem instintivamente rejeita. Mas, graças à
paciência, o homem acaba por descobrir que nestas provações havia apenas
uma aparente coerção que mascarava uma verdade clara, firme e
esplendorosa, no espírito de uma alegria divina, não enganadora. O homem
não pode saborear o amor divino na sua graça e imensidão, a não ser depois
que seu espírito passou pela provação da hostilidade, do ódio, da
provocação dos homens.
Mas, sozinha, a obscuridade não produz luz alguma, assim
como a tristeza, sozinha, não traz a alegria, nem ódio produz o amor.
Sozinha, a terra não produz as plantas, pois é necessária a semente,
semeada com atenção e cuidado. Além disso, para germinar, deve-se pôr sob
a terra não uma semente qualquer, mas aquela que contém vida!
De modo análogo, é necessário que o espírito esteja vivo e
em estado de perfeita submissão a Deus, para que a mão misericordiosa o
ponha na terra das provações, com aqueles cuidados e naquele modo exato
que o ajudarão a tirar proveito da obscuridade, da dor, do desprezo e
assim permitir-lhe-á comunicar o movimento de vida eterna, na qual se
manifestam os atributos da eternidade: alegria, amor, paz e perseverança.
Deste modo, constatamos que, para o homem a caminho, é
exigido estar num estado de vigilância constante nos confrontos de toda a
realidade de sua vida, voltando o olhar atento àquela verdade onipresente
que há nele e que exige ação e fadiga. É pedido ao homem estar pronto para
enfrentar toda circunstância que seja causa de mal-estar e de antagonismo,
com uma atitude positiva que saiba reconhecer os perigos reais e tirar
proveito de tudo aquilo que acontece nele e para ele. É-lhe exigido buscar
em toda atitude a união com Deus, submetendo-lhe inteiramente a vontade.
Sem inquietação ou perturbação, qualquer que seja a situação, e sem
angústia nem hesitação, por mais prolongada que seja a prova. E tudo isso
sem precipitar-se em fazer suposições sobre as causas e sem, nem mesmo,
apressar-se em querer conhecer as conseqüências.
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen. |