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Christos Yannaras

A FÉ VIVA DA IGREJA

Introdução à Teologia Ortodoxa

Tradução brasileira da versão francesa:
LUÍS ARTIGAS
Curitiba 1997

EDITION DU CERF
29, bd Latour-Maubourg 75007
Paris 1989

Capítulo 5: O Deus Trinitário

5.1 O testemunho bíblico

Deus da Igreja é o Deus da experiência trinitária, e não o Deus das hipóteses teóricas e dos raciocínios abstratos. Assim, a experiência da Igreja nos garante, exatamente, que o  Deus que se revela na história não é uma Existência solitária, uma Mônade autônoma, ou uma Essência individual. Ele é uma Trindade de Hipóstases -  Três Pessoas com uma completa alteridade existencial, mas também uma comunidade de Essência, de Vontade e de Energia.

Na tradição de Israel, consignada nos livros do Antigo Testamento, encontramos claramente algumas expressões antecipadas e prefigurações da verdade referente ao Deus trinitário. No relato da criação do mundo, onde tudo é feito somente pela palavra   de Deus, seu mandamento criador, de maneira inesperada, a decisão de criar o homem é expressada em plural, como expressão da vontade comum de várias pessoas: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1, 26). E quando Abraão encontra Deus perto do carvalho de Mambré, tem diante de si três homens, mas os interpela como se fossem somente um: “Deus apareceu-lhe no carvalho de Mambré, estando sentado na entrada da sua tenda, no momento mais quente do dia. Levantando os olhos, viu três homens em pé diante dele; quando os viu, correu da entrada da sua tenda ao encontro deles, e prostrou- se na terra. Disse: Meu Senhor, te suplico, se encontrei graça aos teus olhos [...]” (Gn 18, 1-3).

Estas imagens e expressões antecipadas tornam-se uma revelação histórica imediata no âmbito do Novo Testamento. Os discípulos ouvem o Cristo falar-lhes de Deus, seu Pai, e do Espírito de Deus, o Paráclito. Três deles, Pedro, Tiago e João, são julgados dignos de ouvir a voz de Deus Pai no monte Tabor, e de entrar na treva luminosa da presença do Espírito. Também João, o Precursor, e seus próprios discípulos, no momento em que o Cristo é batizado no Jordão, ouvem a voz do Pai confirmando para eles a filiação de Jesus, e veem o Espírito descer sobre o batizado, como um bater das asas de um pássaro branco, como uma pomba. Trata-se de experiências de caráter sensível e imediato, sem, todavia, a limitação inerente à forma do objetivo e do individual. Por isso, somente com imagens podem ser expressadas: a voz como um trovão vindo do céu (Jo 12, 27), a descida do Espírito como se os céus se abrissem, se rasgassem (Mt 3, 16; Mc l, 10), ou como uma nuvem luminosa que cobre totalmente os discípulos (Mt 17, 5; Mc 9,7; Lc 9, 34), ou ainda, como um violento golpe de vento e como línguas de fogo que pousam sobre cada um deles.

A recensão das experiências e da pregação da primeira comunidade apostólica preservará, da mesma maneira, o ensinamento do Cristo sobre a verdade da Divindade trinitária. O Cristo, como Filho, distingue.se pessoalmente do Pai: ele veio na terra “em nome do Pai” (Jo 5, 43) para cumprir a vontade do Pai e os mandamentos do Pai (Jo 4, 24; 5, 30; 15, 10), manifestar o seu Nome aos homens e trabalhar na sua obra (Jo 17, 5-6). Fala com seu Pai pela oração (Mt 11, 25; 26, 39; Jo 17, 1-25), e é a Ele que entrega o seu espírito morrendo na Cruz (Lc 23,46).

Mas, ao mesmo tempo, o Cristo garante que “eu e o Pai somos um” (Jo 10,31) e que “tudo o que é do Pai é meu” (Jo 16, 15), sem que esta unidade suprima a sua identidade existencial própria, pois pede também ao seu Pai em favor dos seus discípulos “que eles sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti; que eles também sejam um em nós... como nós somos um” (Jo 17,21-22).

De maneira bem nítida, o Cristo distingue tanto do Pai quanto de si mesmo, a existência do Paráclito, que é o Espírito Santo, o Espírito da verdade. Ele anuncia antecipadamente a sua vinda, e garante que “Ele dará testemunho   de mim” (*Jo 15,26), que “Ele vos ensinará tudo” (Jo 16, 13). Mas, assim corno Filho “nada poder fazer por si mesmo” (Jo 5, 19), também o Paráclito “não falará por si mesmo” (Jo 16, 13). O Cristo diz que “ele receberá do meu e vo-lo desvendará” (Jo 16,14). É bem característico o fato de encontrarmos no texto evangélico uma escolha de termos que manifestam, de maneira incontestável, três Existências diferentes, três Pessoas da Divindade, sem, todavia, que tais Existências constituam individualidades autônomas. As Pessoas da Trindade não existem cada uma por si mesma, não reivindicam uma autonomia existencial. Antes pelo contrário, as palavras do Cristo manifestam a unidade de vida, de vontade e de energia do Deus trinitário, das três Pessoas divinas.

Assim o Cristo garante que, a respeito dele mesmo, Deus é Pai, Aquele que o gera, e que, portanto, é a Fonte e a Causa da sua existência como filho e Verbo de Deus. E o Pai também é a Fonte e a Causa da existência do Paráclito. Se o Filho é o Verbo de Deus, o Paráclito é o Espírito de Deus, “que procede do Pai” (Jo 15, 26), tirando sua processão, sua origem e proveniência existenciais, do Pai. O envio do Paráclito ao mundo manifesta, ainda, a vontade e a energia comuns na Divind,ade trinitária. Também neste ponto as expressões do texto evangélico são características: “O Paráclito que eu vos enviarei de junto do Pai” (Jo 15, 26), “eu pedirei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, o Espírito da verdade” (Jo 14, 16-17), “o Espírito Santo que o Pai enviará no meu nome” (Jo 14, 26). Há expressões bíblicas da vontade e da energia comuns às três Pessoas da Trindade que se referem também, paralelamente, à encarnação do Verbo, à vinda do Cristo como homem: Deus Pai envia o seu Filho ao mundo e o Espírito Santo realiza a encarnação “assumindo na sua sombra” a Virgem Maria.

5.2 O desafio filosófico

Todas estas expressões e formulações da Escritura, relativas ao Deus trinitário da Igreja, nada tem a ver com os problemas filosóficos; não visam responder questionamentos teóricos, nem tiram termos e conceitos da língua da filosofia.  Trata-se de uma simples recensão da experiência histórica da primeira comunidade apostólica e de palavras do Cristo que iluminam esta experiência.

Todavia, a tentação das exigências da filosofia espreita por trás de cada aspecto da vida do mundo helênico, mundo onde nasce e cresce a Igreja. Um escândalo insuperável bate contra o pensamento ativo dos gregos: Deus, para ser Deus, deve ser um Ser absoluto e ilimitado. Como, então, pensar na existência de três seres absolutos? Cada um deles, para ser absoluto, deveria negar a absolutidade dos outros, pois a absolutidade e a pluralidade são noções contraditórias.

A resposta mais engenhosa e mais acomodatícia a esta questão foi formulada em primeiro lugar por Sabélio, um intelectual romano helenizado do começo do século III. Para Sabélio, o Deus da filosofia helênica, o Ser absoluto e ilimitado, é o próprio Deus da Igreja. As três Pessoas, cuja existência é testemunhada pela experiência histórica da Igreja são somente “personagens”, três maneiras diferentes de manifestação e de operação do Deus único: Deus se manifesta e age concretamente no Antigo Testamento como Pai, no Novo Testamento como Filho, e na vida da Igreja corno Espírito Santo.

Esta resposta de Sabélío não era certamente original. Sabélio apenas recapitulou radicalizou uma problemática teológica nascida no Oriente e desenvolvida sobretudo no Ocidente com o nome de monarquianismo.  O monarquianismo (de   monarquia-mônade) tentava conciliar o caráter trinitário do Deus cristão com a exigência racional: um único só Princípio transcendente deve constituir a   “Divindade propriamente   dita”.  O pensamento romano, que sempre demonstrou urna inclinação a racionalização e as esquematizações, destacou-se, aliás, pela sua vontade de responder às exigências da razão; o que explica, aliás, que tenha cultivado com tal sucesso a ciência jurídica

No mais, Sabélio nada mais fez do que utilizar a respeito da Santíssima Trindade, o termo de pessoa, com o significado que tinha na época na língua grega e latina. A palavra grega prosopon (como sua tradução latina: personasignificava a máscara que os atores colocavam para representar no teatro¹.

As Igrejas cristãs recusaram sem meios termos a interpretação de Sabélio, particularmente vivaz no Oriente. A experiência da Igreja e o testemunho da Sagrada Escritura testemunhavam a distinção real de três Existências, a identidade existencial própria de cada uma delas: estas existências estão inter-relacionadas e se referem umas às outras, ao mesmo tempo que se diferenciam nitidamente pela sua “hipóstase”, ou seja, pela sua entidade real. A teoria das “máscaras” negava tanto o significado bem claro das palavras de Cristo nos Evangelhos, quanto a referência vital da Igreja à Pessoa do Pai, à Pessoa do Filho e à Pessoa do Paráclito.

Todavia, mesmo rejeitado pela Igreja, o Sabelianismo (a doutrina de Sabélio) continuou sendo difundida como teoria, e ganhando adeptos. Ela tinha o mérito de satisfazer facilmente a razão humana, oferecendo uma interpretação esquemática e simplificada da maneira como o Deus da Igreja é ao mesmo tempo único e trinitário.

No final do século III, o Sabelianismo propagou-se na Líbia. E as discussões que ali se levantou provocaram a intervenção dos teólogos e dos clérigos da cidade vizinha de Alexandria. Naquele momento, todo mundo utilizava já   nas discussões os termos da filosofia helênica. Os alexandrinos falavam da Essência única de Deus e das três Hispóstases: Pai, Filho e Espírito. E os ocidentais consideravam a Hispóstase única de Deus e as três Pessoas da sua revelação histórica. Os alexandrinos viam nesta formulação ocidental uma pervivência da heresia de Sabélio, e os ocidentais temias o risco de triteísmo na formulação alexandrina.

No âmbito destas discussões, no início do século IV, é que nasceu o arianismo, heresia que abalou durante várias décadas a totalidade do Império romano. Ário foi um presbítero de Alexandria, defensor fanático das ideias de Sabélio. Querendo defender a existência real das três Pessoas da Trindade, mas, ao mesmo tempo, permanecendo fiel às exigências do pensamento filosófico, começou a ensinar que era necessário distinguir não somente Hipóstases diferentes, mas também Essências diferentes, no que concerne às Pessoas da revelação divina.

Então Ário dizia que o Filho não é consubstanciai (homoousios) ao Pai (isto é, da mesma essência do Pai), mas de uma essência diferente, “criada”.  Também ele teria sido criado por Deus, antes de todas as outras criaturas. Assim, combatendo o Sabelianismo, caía também na mesma armadilha das exigências do pensamento racional, aceitando uma única Essência divina e rebaixando o Filho ao nível de uma “criatura”.

Não vamos insistir nos dados históricos. O que colocamos até aqui era necessário para mostrar sob o efeito de quê necessidade histórica a Igreja foi levada a interpretar a experiência do Deus trinitário com a ajuda da linguagem filosófica. Isto explica realmente por quê os Padres da Igreja conseguiram realizar finalmente esta interpretação sem trair minimamente a certeza experiencial da Igreja, e sem recusar o apoio da filosofia helênica, sobretudo no plano da linguagem-terminologia e do método.

Os grandes autores desta façanha foram, sem dúvida, os três eminentes Padres capadócios: Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa. Mas teríamos que aludir também aos precursores-fundadores da obra dos Capadócios:  Inácio de Antioquia, Irineu de Lyon e Atanásio de Alexandria. Como continuador e autor da mais completa síntese filosófica, convém mencionar Máximo o Confessor, cuja obra foi preparada por Leôncio de Bizâncio e Teodoro de Raïtou, e levada ao seu acabamento sistemático por João Damasceno e Fócio o Grande, atingindo o vértice da teologia no século XIV, com Gregório Palamàs, Nilo e Nicolau Cabasilas.

5.3 A «carne» linguística da verdade

Os Concílios ecumênicos adotaram o ensinamento dos Padres gregos, consagrando-o como definição-delimitação da verdade da Igreja. Além disso, a consciência dos fiéis reconheceu na pessoa deles o cumprimento de uma obra análoga à da Santa Mãe de Deus: assim como ela ofereceu o seu corpo para a encarnação histórica do Filho e Verbo de Deus, assim também os Padres ofereceram, com santidade e pureza de intenção, seus surpreendentes dons intelectuais, para que a verdade da revelação divina assumisse a “carne” histórica da língua dos homens.

Contudo, devemos colocar aqui um parêntese: Por quê os Padres tiveram que assumir por conta própria a língua da filosofia helênica? Fazendo isto, não estavam complicando a formulação evangélica da verdade, tomando-a assim menos acessível às pessoas simples?

Estas questões florescem hoje em dia, num tempo em que a filosofia e o seu linguajar ocupam um número relativamente pequeno de pessoas que fizeram estudos especializados e dentro de um círculo “acadêmico”, como se diz. Mas na época dos Padres não era bem assim. Pode-se dizer que, no mundo helênico, desde a Antiguidade clássica até o período bizantino, os problemas filosóficos interessavam amplamente as camadas populares, suscitando discussões entre pessoas de todos os níveis e classes sociais. Toda a civilização dos gregos, tanto na época pré-cristã como na cristã, estava fundamentada na prioridade absoluta da verdade e na busca da verdade. Atualmente, a civilização em que nós vivemos prioriza a utilidade e não a verdade, o que explica que seja a política e não a filosofia que tem o favor de todos os estratos sociais. Por isso, custamos a compreender que na época dos Padres, as pessoas simples discutiram nas ruas e nas lojas sobre o Deus consubstancial e tri-hipostático, ou sobre a diferença entre Essência e Hipóstase. Porém, um bizantino da época sentiria a mesma surpresa se hoje em dia ele ouvisse conversar um operário marxista “ortodoxo” com seu “camarada” trotskista ou maoísta sobre as noções de “mais-valia” ou de “acumulação do capital”.

Vamos tentar apresentar aqui o ensinamento da Tradição cristã (o ensinamento dos Padres, e as decisões dos Concílios) a respeito do Deus trinitário, numa língua simples e acessível ao homem de hoje.

5.4 Essência e hipóstase

O Deus da experiência eclesial é Uno e Trinitário. Para ajudar a entender a verdade do Deus Uno, a Igreja utiliza abusivamente a noção filosófica da Essência una. E, para designar o caráter trinitário de Deus, utiliza a noção de três Hipóstases ou Pessoas. Assim, para a Igreja, Deus é consubstancial (uma Essência) e trí-hipostátíco (três Hipóstases ou Pessoas).

Eu disse que fazemos um uso abusivo da noção de essência, porque esta palavra significa participação no ser - a palavra essência (ousía) vem do particípio presente feminino do verbo ser (eimi). Ora, no caso de Deus não se pode falar de participação no ser, mas do próprio Ser, da plenitude de toda possibilidade de existência e de vida. Eis por que a formulação apofática de essência super-essencial, utilizada amiúde pelos Padres, expressa melhor a verdade sobre o Deus da Igreja.

Todavia, a distinção entre Essência e Hipóstases da Essência ajuda a Igreja a “definir” e descrever a experiência da revelação divina. Compreendemos mais nitidamente, quer me parecer, o que tal distinção pretende definir, refletindo sobre o fato de que o homem criado “à imagem” de Deus, também é uma essência (consubstancial) e muitas hipóstases ou pessoas (multi-hipostático). Nós deduzimos a noção da essência única a partir do conjunto de qualidades e características de todos os homens: cada ser humano possui a razão, o pensamento, a vontade, o juízo, a imaginação, a memória etc. Todos os homens participam da existência, do ser, através destas modalidades comuns, tendo então uma essência comum. Mas cada realização particular (hípóstase) desta essência, isto é, cada humano considerado separadamente, encarna todas as qualidades comuns da essência de maneira única, diferente e insubstituível: ele fala, pensa, julga e imagina de maneira totalmente diferente (distinguindo-se de todos os outros seres humanos), e assim toda existência humana possui uma alteridade absoluta.

Portanto, a essência de que estamos falando, tanto no caso de Deus quanto no homem, não existe fora das pessoas concretas que lhe permitem existir. As pessoas hipostatízam a essência, conferem-lhe uma hípóstase, isto é, uma existência real concreta. A existência somente existe "nas pessoas"; as pessoas são o modo de exístência, da essência.

Porém, isto não quer dizer que a essência seja somente uma noção abstrata (a noção de divindade ou de humanidade) que se formaria somente no espírito humano como um concentrado das propriedades e qualidades comuns. Acabamos de afirmar que a essência somente existe encarnada em pessoas concretas. Mas, sobretudo no caso do homem, as pessoas concretas que todos nós somos experimentamos de maneira real a distinção entre a nossa hipóstase pessoal e a nossa essência ou natureza²: sentimos freqüentemente em nós a coexistência de dois desejos, de duas vontades, de duas necessidades que exigem ser satisfeitas. Um destes desejos, vontades ou necessidades, expressa a nossa escolha e preferência livre e pessoal, enquanto que o outro é um impulso natural (tendência ou inclinação) que se opõe ao primeiro e se apresenta como uma exigência impessol, (instintiva, eu diria) onde não há espaço para a nossa liberdade de pensar, julgar e decidir. Esta cisão é indicada pelo Apóstolo Paulo, quando escreve aos romanos: "Percebo nos meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão... pois não faço o que quero, antes, o que odeio... Com efeito, querer o bem, isso ·eu posso, mas fazê-lo, não" (Rm 7, 15-23).

Nas páginas seguintes haveremos de falar, de maneira mais profunda, sobre esta "revolta" da natureza humana diante da liberdade da pessoa, deste impulso que leva a natureza a existir, subsistir e se perpetuar por ela mesma, somente como natureza, e não como alteridade e liberdade pessoais. E, veremos que esta cisão entre natureza e pessoa constitui o fracasso (o “pecado”) da existência humana, que tem a morte como consequência última. Mas o que no momento nos interessa aqui refere-se à verdade da natureza ou essência, que estudamos no caso do homem, e que aparece como experiência existencial de oposição à liberdade da pessoa. No caso de Deus, pelo contrário, não possuímos nenhum dado que nos permita estudar a sua Essência, e nos limitamos a acreditar que em Deus não há oposição entre Natureza e Pessoa, pois em Deus não existe nem morte nem insucesso. Ousamos dizer (sempre de maneira relativa, considerando as capacidades limitadas da linguagem humana) que a plenitude existencial da Natureza divina se harmoniza absolutamente com a liberdade das Pessoas divinas, de maneira que a vontade e a energia divinas são comuns, e que a unidade de vida da Trindade é indivisível. A unidade de que se trata é uma unidade tanto de Natureza quanto de liberdade, liberdade que unifica a natureza na vida do amor - pois o amor constitui o ser da Divindade. Mas o que seja exatamente a Essência da Divindade, hipostasiada nas três Pessoas, isso nós não podemos saber. Isto ultrapassa não somente as capacidades da nossa linguagem, mas também nossas capacidades de percepção e os limites da nossa experiência. Falamos, portanto, do mistério incompreensível da Divindade, da verdade insondável da Essência divina.

5.5 A Pessoa

Nós desconhecemos o que Deus seja na sua Essência; pelo contrário, conhecemos o seu modo de existência. Deus é existência pessoal, três existências pessoais concretas cuja alteridade é testemunhada pela experiência histórica direta da Igreja.

Também aqui devemos interromper por um instante: o que ê, exatamente, uma existência pessoal? O que significa pessoa? Definir a pessoa parece difícil, e talvez, finalmente, impossível. Mesmo no caso do homem, onde a indivualidade corporal toma concreta e imediatamente ace.ssível a "personalidade". os elementos pessoais da existência humana, parece praticamente impossível definir objetivamente o que seja que conastituí a personalidade, o que confere à existência um caráter pessoal.

É verdade que há uma resposta convencional, comumente dada a estas questões: todos entendemos que o que diferencia a existência pessoal de qualquer outra forma de existência são a consciênda e a alterídade. Chamamos "consciência" o conhecimento da própria existência, a certeza que tenho de existir e de ser, eu que existo, um ser dotado de uma identídade, identidade que me diferencia de qualquer outro ser. Esta distinção constitui uma alteridade absoluta, uma caracteristica que define a minha existência de maneira única, diferente e insubstituível.

Todavia, o conhecimento da própria existência, o eu, a identidade, a consciência da alteridade absoluta, não são simplesmente e somente um produto do pensamento, 0 resultados de uma função cerebral que chamamos inteligência. A consciência é bem mais do que uma certeza intelectual; ela detecta “estratos” que hoje em dia são explorados por toda uma ciência, a psicologia profunda, e que ela chama: subconsciente, inconsciente, eu, superego. De mil maneiras, esta disciplina tenta determinar este ser finalmente inaferrável e indefinível que é o homem, além das funções corporais, das reações bioquímicas e das excitações celulares, ou de qualquer outra explicação objetiva.

A partir da análise dos sonhos, das associações de ideias e dos automatismos do comportamento, da ligação com as experiências vividas durante a infância e com as relações originais no seio do ambiente familiar, a psicologia profunda tenta detectar a maneira como o eu se forma e amadurece. Ora, esta maneira, tanto de constituição quanto de amadurecimento do eu, nada mais é do que a relação, o relacionamento. O que constitui o homem é a possibilidade que tem de situar-se diante de alguém ou de algo, de voltar seu olhar para alguém ou para algo, dirigindo-se a um tu, afinal, de ser pessoa , de dizer “eu” dirigindo-se a um tu, de dialogar, de comunicar. A pessoa não se reduz a uma unidade aritmética, a um elemento de um conjunto, a uma entidade em si. Ela existe somente como consciência da sua alteridade; consequentemente, ela existe somente diante de outra existência, através de uma relação, de um relacionamento.

Assim sendo, somente a relação direta, o encontro, a frequentação, podem nos fazer conhecer uma pessoa. Nenhuma informação objetiva pode esgotar o caráter diferencial da pessoa, fazer com que a conheçamos. Qualquer que seja a amplidão das descrições detalhadas que possamos fornecer, qualquer que seja nossa insistência em detalhar de maneira quantitativa os sinais diferenciais e as qualidades individuais (traços de fisionomia, de temperamento, de caráter etc.), nossas indicações acabarão correspondendo a um grande número de indivíduos, pois é impossível com somente a ajuda das nossas informações objetivas do nosso linguajar cotidiano, indicar o caráter único e diferente de uma pessoa. Portanto, é necessário apreciar especialmente a importância da função do nome, a única realidade que, além das noções e indicações, pode significar a unicidade, pode expressar e manifestar uma pessoa.

5.6 A experiência da relação

Se nestas descrições e análises a experiência da aproximação da verdade da pessoa é um pouco esboçada e descrita, podemos acrescentar agora que a Igreja possui semelhante experiência no seu encontro e no seu relacionamento com as Hipóstases da Divindade. Vimos que o caráter pessoal da Divindade é testemunhado inicialmente pela experiência dos pais de Israel: eles encontram Deus “face à Face”, conversam com Ele “um diante do Outro”. O Deus de Israel é o Deus verdadeiro, isto é, o verdadeiro existente, o Deus vivo, porque é o Deus da relação, da imediatidade pessoal. O que se encontra além da possibilidade de relação, o “i-relacional”, é, pela sua própria natureza, inexistente, quer seja testemunhado pela razão humana, quer não. Moisés, no monte Horeb, pede a Deus que revele a sua identidade pessoal ao seu povo, manifestando o seu Nome (Ex 3, 13-14). “Eu sou quem sou”, responde Deus. Moisés faz então saber ao povo que Yahveh (“Eu sou”) o envia, e convida os israelitas a adorar “Aquele que é”. O Nome divino não é um substantivo que colocaria Deus no meio dos seres, nem um adjetivo que lhe conferiria uma qualidade característica. É um verbo, é, nos lábios humanos, um eco do Verbo com que Deus se designa pessoalmente como existente, como o único existente por excelência.

Na experiência de relação com seu povo, Deus se designa pessoalmente como existente; a revelação do seu Nome como um nome de existente, é uma relação-Aliança com Israel. Para os israelitas, Deus não é obrigado a existir pela sua Essência, e a sua existência não é uma necessidade lógica. Ele é existente porque Ele é fiel à sua relação-Aliança com seu povo; a sua existência é testemunhada pela relação-fidelidade, isto é, pela imediatidade pessoal da sua revelação e das suas intervenções na história de Israel.

5.7 A revelação da vida

No Novo Testamento cumpre-se esta revelação: Deus é o verdadeiro existente, porque ele é o Pai, o Deus pessoal; pessoal, e não somente “diante” do homem, mas já no seu próprio Ser: “diante” do seu Filho e do seu Espírito. O que concerne Deus tem sua fonte nesta relação de paternidade, de filiação e de processão, da verdade das Pessoas pressuposta por esta relação, e não das consequências lógicas da noção de Deus nem das qualidades necessárias e obrigatórias da essência de Deus.

Manifestando-se pessoalmente como Filho de Deus, Jesus revela que o Pai é o nome que manifesta da maneira mais profunda a hipóstase de Deus, o que realmente Deus é. Ele é gerador e doador de vida, ele é a possibilidade inicial de uma relação que hipostasia o ser (faz dele hipóstases). Nos Evangelhos, o Cristo revela que a paternidade de Deus possui, sobretudo, um caráter único: ela corresponde ao Filho único (monogenes) que é o “bem-amado” (Mt 3, 17), aquele em quem o Pai “colocou todo o seu favor” (Lc 3, 22), aquele que Ele “amava desde antes da criação do mundo” (Jo 17, 24). E o amor é o testemunho por excelência da liberdade, a revelação por excelência da existência pessoal, da essência ou natureza livre de todo determinismo.

Deus Pai “gera” o Deus Filho único, o que quer dizer: a Pessoa do Pai hipostasia o seu próprio Ser (a Divindade) numa relação de amor com o Filho. A unidade do Ser divino (o Deus Um) não é uma necessidade lógica, mas uma unidade de liberdade e de amor. Ela é uma unidade das vontades (Jo 5, 30) e das energias (Jo 5, 17-20) do Pai e do Filho, a sua coexistência mútua (Jo 10, 38; 14, 10; 17, 21 ), a relação mútua e íntima do conhecimento e do amor (Jo 12, 28; 13, 31; 17, 4).

Todavia, o caráter único da paternidade de Deus não se esgota na relação binária com o Filho único, pois esta relação não é uma polarização da vida em duas partes que interagem mutuamente. A unidade do Pai e do Filho é totalmente portadora de vida, é a “vida verdadeira” e a plenitude da vida, pois o Pai é também Aquele de quem procede o Espírito Santo. Ajudando-nos com uma hipótese puramente racional, poderíamos dizer que, sem a geração do Filho, Deus seria uma Mônade transcendente. Assim também, sem a processão do Espírito, ele seria uma pessoa “escondida” numa relação rigorosamente “privada” relação sem ligação com tudo o que não é Deus. Além disso, esta relação determinaria simplesmente a causa da vida, sem constituir a modalidade da vida.

Dizemos isto, não tentando impor à verdade de Deus um esquema da nossa razão, mas para expressar a experiência histórica da revelação: o Espírito Santo realiza na história a manifestação do Verbo de Deus, a encarnação da Pessoa do Verbo e a fundação do Corpo do Verbo (que é a Igreja). Trata-se sempre nisto de acontecimentos de vivificação do criado, relativos, finalmente, à pessoa do Pai, cuja imagem e manifestação é o Filho e Verbo. A revelação pelo Verbo na criação e na história, bem como a Sagrada Escritura, testemunham que Deus é Pai de toda existência pessoal que aceite a filiação, que aceite realizar junto com Deus a mesma relação de vida que o Filho partilha com o Pai, e que é obra do Espírito: sua própria processão do Pai faz da filiação uma relação que vivifica todos os existentes. É “o espírito de filhos adotivos que nos faz clamar: Abba! Pai! O Espírito se junta pessoalmente ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus... co-herdeiros do Cristo” (Rm 8, 15-17).

5.8 O princípio vivificante

A Igreja, passando do nível da ação ao nível da existência, compreende os textos da Sagrada Escritura como um testemunho e uma revelação da maneira segundo a qual Deus não somente age, como também é. Dissemos acima que os Padres capadócios foram os primeiros a efetuar, na sua teologia, um corte radical em toda a história da filosofia. Mas esta nova síntese da filosofia helênica, feita pelos Pais, é antes de mais um comentário dos textos bíblicos, numa fidelidade absoluta tanto ao seu espírito quanto à sua letra.

Em que consiste o corte radical de que falamos? Na identificação da hipóstase com a pessoa. Para os Padres, a pessoa é a hipóstase do ser; a existência pessoal faz do ser uma realidade. Pela primeira vez na história humana, o ser, a existência em geral, não é considerado nem como um dado evidente, nem como uma realidade submetida a uma razão (logos) ou a uma maneira de realização (hipóstase) predeterminada: o existente não é predeterminado na sua hipóstase pela essência que lhe é dada.

Um exemplo bem simples vai nos mostrar como funcionava a respeito o pensamento grego antigo, e como, em muitos casos, a filosofia continuou funcionando no Ocidente.

Se eu quiser fazer um corta-papéis, eu teria que, primeiramente, conceber no meu espírito a noção de corta-papéis, o conjunto das características (logoi) que o designam, isto é, a essência a ele atribuída. A essência “corta-papéis” precede, e a fabricação do corta-papéis concreto vem depois; a fabricação hipostasia a essência atribuída ao corta-papéis (faz dela uma hipóstase, uma existência concreta).

Ampliando este exemplo, teremos que admitir que todo existente é a hipóstase (a realização) de uma essência universal). Esta precede e determina a maneira e a razão (logos) da especificidade de cada existente. Se Deus, portanto, é um existente, então também Ele é a hipóstase de uma essência determinada, a sua existência realiza (hipostasia) a maneira e a razão específicas da sua essência.

Por outras palavras, o que existe antes da existência concreta (a possibilidade de existência, a possibilidade do ser é uma necessidade lógica, logoi ou maneiras ou essências ou ideias dadas, às quais é submetida a realização (hipóstase) de toda existência concreta, inclusive a de Deus. Platão falou claramente de um “mundo de ideias-essências”, que conteria os “modelos lógicos” de toda existência, e que seria anterior ao próprio Deus.

A Igreja, no ensinamento dos Padres, nega radicalmente esta concepção. Não é a essência que precede e determina a existência; a pessoa é que constitui a possibilidade primeira da existência, a possibilidade inicial do ser. A pessoa precede como consciência dotada de uma alteridade absoluta, isto é, de uma liberdade absoluta a respeito de toda necessidade, de todo determinismo: razão, maneira ou essência.

O Deus pessoal é, para a Igreja, a possibilidade primeira da existência, a fonte e a causa do ser. Deus não é em primeiro lugar uma Essência determinada, que existiria depois como Pessoa. Mas ele é antes de mais uma Pessoa que, absolutamente livre de toda necessidade e determinismo, hipostasia o seu Ser, a sua Essência (faz Hipóstases). Gerando o Filho e fazendo proceder o Espírito Santo de maneira eterna. A Pessoa de Deus Pai precede e determina a sua Essência, sem ser determinada por ela. Deus não é obrigado pela sua Essência a ser Deus, Ele não está submetido à necessidade da sua existência. Deus existe porque Ele é o Pai: aquele que testemunha livremente a sua vontade de existir gerando o filho e fazendo proceder o Espírito Santo. Existe porque Ele ama, o amor sendo somente um acontecimento de liberdade. Em toda liberdade e por amor, o Pai (“de maneira intemporal e por amor”) hipostasia o seu Ser numa Trindade de Pessoas. Ele constitui a razão (logos) e a maneira da sua Existência como uma comunhão de liberdade e amor pessoais.

5.9 Liberdade e amor

As consequências desta verdade são capitais. O que constitui o princípio, a causa, a fonte, ponto de partida da existência, não é uma necessidade lógica impessoal, nem a preexistência inexplicada de uma Essência divina, nem o impulso cego de uma Natureza indeterminada e absoluta. O que realiza a existência é a liberdade de uma Pessoa, porque esta Pessoa ama. A partir daí as qualidades que atribuímos a Deus, medidas pelas capacidades da nossa razão humana e da nossa linguagem, não saberiam ser consideradas como características impostas à Existência divina pela sua Natureza ou Essência, mas como consequências da maneira de existência pessoal.

Assim, Deus é incriado não porque a sua Essência deve ser incriada, mas porque Ele é uma “Pessoa verdadeira”, um Eu sujeito de uma consciência existencial livre a respeito de todo determinismo e, portanto, também livre a respeito de toda origem, criação ou emanação. Ele é intemporal, sem começo nem fim, precisamente porque a sua Existência pessoal é o início e o fim (finalidade) do seu Ser. Ele não tem que tender a se tornar o que sua essência prescreve, de maneira que sua tendência e o impulso da sua existência para o seu fim essencial (sua finalidade) constituam uma duração temporal. Ele é infinito e ilimitado, “além de todo lugar” porque a sua maneira de existência pessoal é a comunhão adimensional do amor; Ele existe como amor, não como individualidade autônoma, e por isso não se coloca como antítese, criando uma distância e, portanto, magnitudes mensuráveis; a existência da Pessoa de Deus é uma proximidade sem dimensão, sem extremidade, sem limites nem extensão.

A Sagrada Escritura nos certifica que “Deus é amor” (1Jo 4, 16). Ela não nos diz que Deus possui o amor, que o amor seja uma qualidade, um atributo de Deus. Ela nos garante que aquilo que Deus é, é amor, que Deus é como amor, que o amor é a maneira como Deus é. Deus é uma Trindade de Pessoas, e esta Trindade é uma Mônade de vida, pois a vida das Hipóstases de Deus não é uma simples sobrevivência, um acontecimento passivo de permanência na existência, mas uma realização dinâmica de amor, uma unidade indissolúvel de amor. Cada uma das Pessoas existe não para si mesma, mas como oferenda à comunhão de amor com as outras Pessoas. A vida das Pessoas é uma “compenetração mútua” (pericórese) da vida, o que significa que a vida de uma se torna a vida das outras, que a sua Existência surge da realização da vida corno comunhão, da vida que se identifica com o com de si, com o amor.

Se, portanto, Deus é a Existência e a vida verdadeiras, a causa, a fonte e a origem do ser, então em nenhum caso o ser, a existência e a vida poderão ser separados da dinâmica do amor. Desde que a maneira como Deus é nada mais é do que o amor, e desde que esta maneira fundamenta toda possibilidade e toda expressão de vida, a vida, para se realizar, deve se desenvolver como amor. Se ela não se desenvolve como amor, a existência não funda nenhuma vida; e esta eventualidade é uma possibilidade oferecida à liberdade da pessoa, pois somente a pessoa, e somente por uma façanha da liberdade, pode realizar a vida como amor. Se as hipóstases pessoais querem realizar livremente a existência não à maneira da vida, a maneira da plenitude trinitária da vida, mas de outra maneira, então a própria existência não atinge seu fim (sua finalidade) que é a vida, não atinge a finalidade para a qual existe. A morte se apresenta então como a consequência última da liberdade revoltada.

A verdade concernente ao Deus trinitário da Igreja não é uma verdade parcial e “religiosa”, uma resposta melhor ou pior do que tantas outras que já foram dadas ao problema de Deus. A verdade do Deus trinitário é a resposta da Igreja às questões sobre a vida e a morte, o esclarecimento do mistério da existência, a revelação da possibilidade de atingir uma vida verdadeira, livre do tempo e da corrupção.


Notas

¹ O conceito cristão de pessoa, carregado do seu conteúdo absoluto e ontológico, afirmou-se progressivamente no Ocidente através do termo persona, e no Oriente através dos termos hypostasis (hipóstase) e prosopon.

² Os dois termos, essência e natureza, são comumente utilizados num sentido idêntico.

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