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Monacato basiliano: o mosteiro dentro do mundo

Edmar Checon de Freitas
Orientação de: Prof. Marcus S. Cruz

Universidade Federal do Espírito Santo,
Departamento de História

quele que olha para a história do cristianismo e se detém pelas alturas do século IV há de se deparar com a força e o vigor dos movimentos ascético-monásticos. Indivíduos vivendo retirados no deserto, por vezes habitando em tocas ou empoleirados em colunas, submetendo-se a todo tipo de privações e mortificações, na busca confiante de cumprir a vontade de Deus, constituem um quadro bastante provocador para o historiador.

Acrescente-se a isso a existência de comunidades monásticas, com toda a complexidade inerente à conciliação entre a vida em grupo e o retiro e teremos um dos mais férteis terrenos para investigação.

Entretanto, considerando que um movimento social não pode ser compreendido unicamente por sua análise particular, devemos estender o nosso olhar para contemplar toda a complexidade do momento em que o monacato se desenvolve dentro dos meios cristãos, mais precisamente o contexto histórico do mundo mediterrâneo tardo-romano. Isso significa integrar a análise do monacato ao conjunto de transformações, políticas, econômicas, sociais e mentais que se sucedem na esteira do momento de crise atravessado pelo mundo romano no século III e que vêm a dar ao seguinte o caráter de uma transição entre os convencionalmente denominados mundos «Antigo» e «Medieval».

Evidentemente a «fertilidade» do nosso terreno investigativo é assim grandemente ampliada. Dessa forma, multiplicam-se os trabalhos e as idéias relativos ao monacato, seu significado e o porquê de seu aparecimento e difusão. Embora a variedade dessa produção seja considerável, podemos agrupá-las tendo como parâmetro a interpretação dada ao papel do monacato na sociedade.

Uma primeira interpretação seria aquela que entende o monacato, fundamentalmente, como parte da evolução da espiritualidade cristã, apresentando todavia, características de reação frente à nova posição ocupada pela Igreja no mundo romano do século IV: com o fim das perseguições e a proteção do Estado iniciada por Constantino, ela teria se tornado por demais mundana, o que Marrou (1984:278) assinala como «afrouxamento da tensão espiritual no interior da Igreja.»

Uma outra visão seria aquela que analisa o monacato como uma atitude, tomada no plano religioso, que expressa os conflitos resultantes das transformações sociais de sua época, tornando-se assim um excelente meio de compreendê-la (TEJA,1989:82).

Há aqui que estabelecer algumas distinções. A idéia do monacato expressar sua época recebe também tratamento variado. Assim ele pode ser visto como um reflexo das mudanças e das crises sociais (DONINI, 1978:211) ou como rejeição à organização da sociedade e da Igreja (TEJA,1989:95) ou ainda como a manifestação de uma nova sensibilidade religiosa que envolve toda a sociedade, a qual por sua vez relaciona-se com o surgimento de um homem novo, em ruptura com o universo sócio-cultural do Mundo Antigo. Assim, para Peter Brown (1989:279) «os monges e seus admiradores são, com efeito, os primeiros cristãos do Mediterrâneo a olhar deliberadamente além da cidade antiga.»

Quer se trate porém de uma ou outra concepção a ênfase situa-se sempre no ato de ruptura que significa a opção pela vida monástica. A renúncia ao mundo, o abandono de bens e prazeres, a busca da solidão, são elementos fortes na caracterização do monacato e que acabam por criar uma muito justa imagem do monge como diferença com relação ao restante da sociedade. Cabe aqui porém uma reflexão: a vida monástica eremítica, ao estilo dos anacoretas do Egito ou dos estilitas sírios, embora não desapareça, tende a ser substituída ao longo do século IV pelas comunidades de monges, os mosteiros (STÉPHANOS, 1987:24). Ao mesmo tempo em que retiram-se do mundo os monges parecem construir um mundo somente seu. Seria isso possível? Será que os homens e mulheres que optaram por retirar-se do mundo construíram de fato algo totalmente diferente da realidade circundante? Ou será que, na organização das comunidades, na busca pelo sustento, na rotina diária, as atitudes individuais e coletivas não tiveram a marca do homem mundano que os monges aspiravam não mais ser?

Se partirmos da premissa de que o monacato é uma das mais fortes expressões da sociedade tardo-romana enxergá-lo como algo que dela tanto se diferencie soa contraditório. Não queremos dizer com isso que não haja diferenças. É claro que elas existem e distinguem precisamente o mosteiro do mundo. Entretanto, por maiores que elas sejam, por mais santos que sejam os monges ou nos pareçam ser, não se pode deixar de indagar sobre a relação entre a vida dentro do mosteiro e a sociedade que o rodeia, em que medida se aproximam e quando se afastam. Mudando-se assim o ângulo de observação do fenômeno talvez se possa melhor compreendê-lo e, através dele, a sociedade em questão.

Um ponto que nos parece fundamental nesse contexto vem a ser a relação entre as estruturas oficiais da Igreja e o movimento monástico. De início este manifesta-se como algo um tanto marginal, autônomo, fora do controle eclesiástico. Sua ampla difusão acabou por desencadear desconfianças e conflitos, numa Igreja em estreito relacionamento com o Estado, portanto avessa a perturbações na ordem vigente. Entretanto o prestígio dos movimentos monásticos impedia a sua pura e simples exclusão, sendo necessária uma conciliação. Como assinala Teja (1989:94) Dois caminhos poderiam ser seguidos: a Igreja se adaptar aos ideais monásticos ou os monges se integrarem às esferas dirigentes da mesma. O primeiro não era viável, dada a posição da Igreja dentro das estruturas do poder imperial. Restava o segundo caminho, trilhado à medida que os mosteiros foram sendo integrados à vida das cidades, manifestando assim seus aspectos com ela compatíveis.

Para estabelecer uma ponte entre o mosteiro e o mundo, e assim tratar de suas semelhanças e diferenças, uma figura nos será de vital importância: São Basílio de Cesaréia (330-379). Sua trajetória apresenta aspectos tais que o colocam no centro da relação entre monacato e Igreja. Estudá-la, portanto, torna-se um excelente meio para abordagem da questão acima indicada.

Basílio é um rico, nobre e culto cristão de Cesaréia da Capadócia, na Ásia Menor. Sua família possui uma notável tradição religiosa. Nela, no dizer de D. Fernando Figueiredo (1989:48) «se é santo de pai para filho.» Após concluir seus estudos em Constantinopla e Atenas inicia carreira de retórico em Cesaréia, o que faz por pouco tempo: atraído pela vida monástica empreende uma viagem pelos mais famosos retiros de seu tempo, no Egito, Síria, Palestina e Mesopotâmia, ao fim da qual decide abandonar a carreira, distribuir seus bens aos pobres e tornar-se monge (FIGUEIREDO,1989:48-49). Mais que isso, Basílio passa a ser um organizador da vida monástica, tendo escrito as famosas Regras Monásticas cuja influência estendeu-se à maioria dos mosteiros do Oriente nos séculos seguintes (PATLAGEAN,1989:559). Entretanto, embora tendo optado pela vida retirada, acaba sendo ordenado sacerdote e posteriormente bispo de Cesaréia, não se afastando contudo, do ambiente monástico. Ao contrário, traz os monges para perto de si, organizando o serviço da caridade em Cesaréia (FIGUEIREDO, 1989:49).

Alguns pontos dessa trajetória pessoal de Basílio devem ser destacados para compreensão de seu significado na história dos movimentos monásticos. Em primeiro lugar, seu duplo caráter de monge e bispo o coloca numa posição singular na relação entre a Igreja e o monacato. Ele participa das duas esferas, as une na sua prática, tornando a opç ão monástica mais assimilável pelo clero cristão. Além disso, ao organizar o serviço dos monges na assistência aos pobres de Cesaréia ele os coloca sob sua autoridade de bispo, abrindo a possibilidade para um controle mais direto do monacato pelo poder episcopal. Essa ação também tem outra conseqüência importante, que vem a ser o fato de, por meio dela, os monges serem de certa forma reintroduzidos na cidade. O ideal monástico para Basílio não passa assim pelo isolamento total. A integração à cidade, à sociedade é um momento fundamental para percepção de seus pontos comuns e divergentes.

Algumas considerações de Ramon Teja (1989:94-96) serão aqui apontadas, visando precisar esse caráter conciliador de Basílio no tocante á integração do mosteiro ao mundo e à Igreja.

As múltiplas e até contraditórias experiências de Basílio tornaram-no capaz de desenvolver ações em vários domínios distintos. Foi aristocrata e amante da vida urbana, da cultura grega. Ao mesmo tempo cristão convicto e admirador da prática monástica. Ao longo de sua vida buscou a conciliação entre esses elementos. É dentro dessa lógica que ele concebe o ideal monástico. Por isso o monge para Basílio é ativo e não puramente contemplativo, participa de certo modo da vida da cidade. Ao buscar a compatibilidade entre os ideais monásticos e a vida urbana a atitude de Basílio mostra-se exemplar no sentido de compreender os mecanismos que levaram à integração do monacato à Igreja oficial.

Um excelente caminho para a apreensão da concepção basiliana de monacato consiste no exame de sua grande obra relativa à organização monástica, as famosas Regras Monásticas. Não são propriamente regras, pois não se trata de um corpo rígido de legislação monacal. Ao contrário é antes um manual para a perfeição do monge na sua busca de seguir fielmente os ensinamentos evangélicos, reunindo também diversas orientações quanto à organização do mosteiro. A tônica de seu conteúdo é no sentido de apresentar a vida monástica não como uma realidade à parte dentro do universo cristão mas sim totalmente inserida nele (FIGUEIREDO,1989:183). A Bíblia é a fonte primeira do pensamento basiliano, embora manifeste-se também a influência do ideal filosófico (SANCHEZ,1992:189). Uma preocupação constante consiste em evitar os exageros nas práticas ascéticas, algo comum a sua época e que ao mesmo tempo despertava o interesse e a desconfiança com relação ao monacato. O rigorismo ascético extremado dos seguidores de Eustácio de Sebaste, amigo e mestre de Basílio, foi o que causou sua condenação pelo Concílio de Gangres (c. 341) , conforme Sanchez (1992:189).

Dividida em dois grandes blocos, as 55 regras mais extensas e as 313 regras menos extensas (aqui indicadas, respectivamente, por RM e Rm) essa obra de Basílio trata de uma ampla gama de temas ligados à vida monástica. Assim são abordados os mandamentos divinos, a renúncia ao mundo, a necessidade da vida retirada, a preferência pela vida em comunidade, oração, trabalho e administração, autoridade, obediência, pecados, punições, alimentos, roupas e outros mais. Um exame de seu conjunto permite, por um lado, compreender o funcionamento do mosteiro basiliano e, por outro, definir a concepção basiliana de monacato e o modo pelo qual são articulados o ideal monástico e as exigências do «mundo.»

Nesse aspecto uma questão nos parece fundamental: a busca da coesão do grupo por meio de uma relação de subordinação total à autoridade de um membro, o superior. A ele tudo deveria ser confiado,«até os segredos do coração» (BASÍLIO DE CESARÉIA: RM 26). Na sua pessoa centralizam-se os poderes, englobando desde a distribuição de tarefas até a decisão sobre punições a faltas dos monges, as mais graves sujeitas à exclusão da comunidade. A comunidade é vista como um corpo, cada um devendo cumprir suas funções sem interferir nas demais nem tampouco contestar determinações (BASÍLIO DE CESARÉIA RM 24).

Uma abordagem que surge daí consiste em se voltar a atenção para as relações de poder no monacato basiliano. A submissão ao superior no mosteiro poderia ser estendida para a autoridade eclesiástica. Assim a questão da autoridade e obediência, presente constantemente ao longo das regras, seria um elemento capaz de levar o monacato na direção da Igreja e ao mesmo tempo do poder imperial a ela ligado.

As pretensões deste trabalho não são porém conclusivas. Ao contrário, definimos aqui um ponto de partida. Para entender como Basílio põe o mosteiro dentro do mundo (e da Igreja) torna-se necessário traçar um paralelo entre ambos, estabelecendo seus contrastes e semelhanças. A s relações de poder seriam um ponto fundamental para a compreensão desse processo, daí sua eleição como principal nível de abordagem. Tal será a orientação seguida nas investigações futuras.

Vitória-ES, Maio/1995

Bibliografia:

BASÍLIO MAGNO, São. As regras monásticas. Petrópolis:Vozes,1983

ALTANER, Berthold & STUIBER Alfred. Patrologia. Vida, obras e doutrina dos padres da Igreja. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1988.

BROWN, Peter. Antigüidade tardia. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges. História da vida privada. I. Do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras , 1989.

______________. O fim do mundo clássico. De Mrco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, 1972.

DANÉLOU, Jean & MARROU, Henri. Nova história da igreja. I. Dos primórdios a São Gregório Magno. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

DONINI, Ambrogio. História do cristianismo. Lisboa: Edições 70, 1988.

FIGUEIREDO, D. Fernando Antônio. Curso de teologia patrística. A vida da igreja primitiva. V.3 Petrópolis: Vozes, 1989.

GRIBOMONT, Jean. Saint Basile evangile et église. Mélanges-Brégolles: Abbaye de Bellefontaine, 1983.

MAIER, Franz Georg. Las transformaciones del mundo mediterraneo. Sglos III-VIII. 11.ed. Cidade do Mexico: SigloXXI, 1986.

PATLAGEAN, Evelyne. Bizâncio: séculos X-XI. In ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges. História da vida privada. I. Do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia da Letras, 1989.

SANCHEZ, Manuel Diego. Historia de la espiritualidad patristica. Madrid: Editorial de Espiriualidad, 1992.

STEPHANOS, Monsigneur. Les origines de la vie cénobitique. Collectanea cisterciencia 49, 1987. p 20-37.

TEJA, Ramon. Monacato y historia social: los origenes del monacato y la sociedad del bajo imperio romano. In: HIDALGO DE LA VEGA, Maria José. La historia en el contexto de las ciencias humanas y sociales. Homenaje a Marcel Vigil Pascual. Samanca: Universidad de Salamanca, 1989.

 

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