O Ícone da Natividade
de
Nosso Senhor,
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«Natividade» (Rublev) |
O interior da gruta é pintada com o que parece ser um preto, mas, na verdade, é um azul muito escuro, pois o preto é proibido na iconografia, por simbolizar o mal. Este “azul muito escuro”, pois então, é visto também nos ícones da Páscoa e de Pentecostes. No da Páscoa, tinge os infernos, ao qual Jesus desce, e cujas portas esmaga, para nos salvar. No de Pentecostes, envolve o rei que representa o cosmos, representando a escuridão e o mal a que o mundo foi levado pelo pecado do homem, os quais Deus quis e quer dissipar pela obra de seu Cristo e de seu Espírito Santo. No ícone da Natividade, temos, portanto, já o Cristo que vai ao encontro do homem, até a morte e os infernos, e da natureza obscurecida, para lhes trazer luz e vida. Jesus, aliás, é envolto em faixas, de uma tal forma a remeter ao linho com o qual foi envolvido depois de sua morte, e sua manjedoura se assemelha a uma sepultura. Com seu nascimento, Cristo já inicia sua entrega pela salvação dos homens e sua rendição à morte, morte com a qual venceu a morte. “Foi amarrado em faixas para libertar a humanidade das amarras do pecado” - escreveu S. Cirilo de Jerusalém. Jesus aceitou ter sua nudez escondida por culpa daqueles que se vestiram certa vez com peles de animais; aceitou ter nascido numa gruta, por culpa daqueles que foram expulsos do Jardim das Delícias, o Éden. Com seu nascimento, Cristo já alcança toda humanidade para divinizá-la.
Ao lado do Menino estão um boi e um asno, que representam os pagãos que se voltam para o Deus encarnado, através de suas práticas passadas - o boi remetendo ao culto idolátrico e o asno, à luxúria – enquanto grande parte do Povo de Deus não reconhece o Messias. Lemos em Isaías:
«O boi conhece o seu possuidor, e o asno, o estábulo do seu dono; mas Israel não conhece nada; meu povo não tem entendimento». (Is 1,3).
Na tradição bizantina, a Virgem Maria tem grande destaque no Nascimento de Cristo, tanto que, no ícone, seu corpo é o de maior proporção, e na liturgia, é comemorada no dia 26, na “Sinaxe da Mãe de Deus”. Não olha para o menino, mas para o infinito, em contemplação, «guardando tudo em seu coração» (Lc 2,19). Está reclinada, cansada, pois o parto foi verdadeiro parto. Está vestida de púrpura, cor que representa majestade, e é envolvida por uma cor vermelha. Maria é a sarça ardente que Moisés viu no alto de um monte, do Monte Horeb; que era tomada pelo fogo, mas não era consumida, da mesma forma que a Virgem foi tomada pelo fogo do Espírito de Deus na Anunciação, mas não teve sua virgindade consumida. Maria é o Mar Vermelho, que Moisés e o povo judeu, com o poder de Deus, atravessaram a pé enxuto, e depois voltou a ser intransitável. Maria foi Virgem antes, durante e depois do parto. “Kaire kekharíthomene” - Ave, toda e para sempre pura!
Já José, o esposo da Mãe de Deus, encontra-se distante da cena. Ele não é o pai do menino. Está com uma feição preocupada e meditativo; representa o drama de todo homem perante o mistério. Concretizando sua dúvida, à sua frente está uma figura estranha, um pastor soturno, apoiado sobre um galho seco – figuração do próprio demônio - que o questiona: “Assim como não pode este bastão produzir folhas, tampouco pode um velho como tu, gerar e, assim, nenhuma virgem pode dar à luz”. Mas entre eles está um arbusto:
«Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor... Naquele tempo, o rebento de Jessé, posto como estandarte para os povos, será procurado pelas nações e gloriosa será a sua morada. Naquele tempo, o Senhor levantará de novo a mão para resgatar o resto de seu povo...» (Is 11,1-2;10-11).
O arbusto é uma resposta à insídia do diabo:
«Não direi mais, se, de fato, a vara de Aarão também produziu em uma só noite o que outras árvores produziu em muitos anos. Não sabeis que uma vara, depois de perder sua casca, nunca vai brotar, mesmo se plantada no meio de rios? Uma vez, porém, que Deus não é dependente da natureza das árvores, mas é o Criador das naturezas, uma vara seca e descascada pode germinar e produzir fruto. Ele, pois, que para o bem do sumo-sacerdote “týpos” deu fruto sobrenaturalmente através de uma vara, não daria Ele para o bem do sumo-sacerdote de fato a capacidade a uma Virgem de conceber um filho?»
(S. Cirilo de Jerusalém, Catequesis, XII)
Já as ovelhas que vemos representam o assombro de toda criação com o nascimento do Senhor.
No ícone, vemos um grande número de anjos, simbolizando que todas as potestades angélicas prestaram louvor ao Senhor no dia de seu nascimento segundo a carne, com as mãos cobertas, sinal de adoração. Três deles, particularmente, representam a Trindade, como no ícone da visitação de Rublev, sendo que dois deles olham para o céu e o outro para a terra, para os pastores. Este é a Pessoa do Filho, que se inclina à humanidade. Junto com os pastores e seus flautins, os anjos cantam. Os anjos entoam “Glória a Deus nas alturas”, e os pastores, completando, “e paz na terra aos homens que Ele ama”. O canto de adoração é o único presente que os pastores, pobres, podem oferecer.
Do céu irrompe uma estrela, que é a própria luz de Deus, até porque em algumas representações vemos como sua origem a Trindade, para guiar os magos até o Salvador.
«Vosso nascimento, ó Cristo nosso Deus,
fez aparecer no mundo a luz do conhecimento,
pois nele os adoradores dos astros
aprenderam de um astro a Vos adorar, ó Sol da justiça,
e a reconhecer que sois o Oriente que vem do Alto.
Senhor, glória a Vós»
(Apolitikion de Natal)
Embora estejam a cavalo, os magos são a prefiguração das miróforas, as portadores de aroma, que se dirigiram ao túmulo de Nosso Senhor para honrá-lo com seus perfumes e, descobrindo-o vazio, correram para anunciar a todos a Sua ressurreição. Como se sabe, os magos darão ao menino três presentes: ouro, incenso e mirra. Rendê-lo-ão, pois, um triplo dom, como o hino dos serafins, que cantamos em nossa liturgia, que O proclama três vezes santo.
Na parte inferior, vemos duas mulheres dando banho ao Menino Jesus. A que O segura, seria, segundo uma tradição apócrifa, chamada de Salomé. José teria achado-a ao ter buscado por uma parteira. Ao ter lhe dito que o neófito era o Senhor de Israel, nascido de uma Virgem, ela duvidou. De repente, sua mão ficou seca como se tivesse pegado fogo. Suplicou a Deus que a curasse. Um anjo lhe disse para se aproximar do Menino e tomá-lo, para ficar curada. E assim aconteceu. A segunda mulher, de acordo também com um apócrifo, seria Eva, que vai à gruta para louvar seu Salvador e Libertador, nascido de uma Virgem, virgem como ela mesma quando estava no Paraíso e caiu no pecado da desobediência. Já a importância do gesto banho é ratificar a verdadeira humanidade de Cristo e prefigurar seu Batismo no Jordão. Batismo que é, por sua vez, segundo particularmente a iconografia, a antecipação da morte e da descida aos infernos, pois a água é representada como um sepulcro líquido no ícone da Teofania de nosso Senhor.
Com esta reflexão, pudemos ver a nuança que o Oriente traz ao Nascimento de Cristo, focando-se mais em todo o mistério da salvação - pois o Natal, início da Encarnação, é inseparável da “economia” pascal, e tem uma dimensão cósmica – do que apenas na fragilidade do menino Deus. Segundo o Arcebispo Raya: “O Ocidente considera o Homem, Cristo, que é Deus, enquanto o Oriente olha para Deus, que se tornou Homem. O Oriente acentua a divindade. O Ocidente, a humanidade. O Ocidente se concentra na proximidade íntima da «sagrada família», no pequeno bebê fofo e redondinho, tão atrativo em sua nudez, sorrindo na maneira de todos os bebês que estão no conforto, cena que foi inventada por S. Francisco de Assis.
Glória a Deus nas alturas, pois hoje «para nós nasceu criancinha o Deus de antes dos séculos», ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos! Amém.
Bibliografia:
PASSARELLI, Gaetano O ícone da Natividade do Senhor São Paulo: Edições Ave-Maria, 1996 (parte da coleção Iconostácio, promovida pelo então Bispo Melquita do Brasil, D. Pierre Mouallem).
RAYA, Joseph Christmas - Birth of Our Lord God and Saviour Jesus Christ & His Private Life Ontario, Madonna House Publications, 1997.
*Igreja de S. Basílio, Paróquia Católica Greco-Melquita do Rio de Janeiro.