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Teologia e espiritualidade do Ícone

Introdução

No âmbito religioso, o termo “ícone” nos situa de maneira imediata ante uma realidade artística que nos remete ao contexto eclesial ou à espiritualidade oriental. Contudo, esta primeira impressão, para dizer a verdade, nos diz muito pouco sobre o conteúdo ou sobre tudo o que se esconde por detrás do que os nossos olhos percebem quando estão diante de um ícone.

Para compreender, ainda que apenas minimamente, o quanto se encerra por detrás da manifestação artística do ícone, para se chegar a apreciar em sua justa medida as dimensões teológicas, espirituais e, inclusive, litúrgicas que constituem a realidade artística do ícone, é preciso que nos aproximemos dele com a sensibilidade própria do meio eclesial, lá onde tem sua origem e onde sua expressão foi se desenvolvendo.

É com a intenção de fazermos algo mais próximo possível desta sensibilidade que reunimos neste “Caderno” alguns dos textos que, além de falar-nos da dimensão artística dos ícones, nos apresenta sua projeção teológica e espiritual, de como são contemplados e “vividos” os ícones no âmbito das igrejas orientais, isto é, ali onde fazem parte da experiência habitual religiosa e litúrgica dos fiéis.

E primeiro lugar, reproduzimos textos de particular significado, tanto para a dimensão magisterial que comportam, como pelo momento em que foram publicados. O primeiro é a Encíclica do Patriarca Dimítrios I, Arcebispo de Constantinopla, enfatizando a teologia e a espiritualidade do ícone. O segundo, a Carta Apostólica “Duodecimum Saeculum”, do Papa João Paulo II, na qual, a partir do quanto comporta a realidade dos ícones, sublinha as dimensões próprias com as quais deve revestir-se sempre a arte religiosa. Os dois textos têm seu ponto de partida na celebração do XII Centenário do II Concílio de Nicéia, último dos concílios plenamente ecumênicos, reconhecidos tanto pela Igreja Católico-romana como pela Igreja Ortodoxa, e no qual foi formulada a doutrina, tanto sobre os ícones como sobre as imagens em geral em relação a seu uso no culto e no que concerne à piedade dos fiéis.

Juntamente com esses documentos, publicamos dois estudos que também tem, seu centro de atenção no II Concilio de Niceia, como momento eclesial particularmente significativo para se compreender, através da história e das vicissitudes deste concílio, o sentido próprio da “doutrina sobre os ícones”, bem como, para ampliar a reflexão que possa surgir desta doutrina em vista de aprofundar o sentido que devemos dar, no Ocidente, à arte religiosa e o apreço que deve merecer o uso das imagens para ajudar pedagogicamente à piedade dos fiéis.

Assim, sem deslocar nossa atenção dos “ícones”, em seu sentido mais próprio, seremos introduzidos nas realidades “icônicas” mais próximas a nós e sobre as que não podemos deixar de prestar uma séria atenção pastoral.

Encíclica do Patriarca Dimítrios I
no XII centenário do II Concílio de Nicéia (787)*

Dimitrios, pela graça de Deus Arcebispo de Constantinopla, Nova Roma, e Patriarca Ecumênico: que a graça e a paz de Deus sejam com todos os fiéis (pleroma) da Igreja.

1. Que o nome do Deus altíssimo seja glorificado e bendito, Ele que por nós homens e por nossa salvação dispões de tudo em favor do homem segundo seu desígnio eterno, de modo que o povo fiel o aproveite para a sua alma através dos acontecimentos de grande importância histórica e, especialmente, através de tudo o que tem lugar no Espírito e no seio da Igreja.

2. Os atos da Igreja são, na verdade, inspirados por Deus, gestos que ao longo dos séculos traçam os contornos da justa fé no único Senhor. Isto encontra sua concreção de maneiras diferentes, porém, sobretudo, graças as santos Concílios ecumênicos que asseguram no Espírito os pontos essenciais da fé salvadora em Cristo e demonstram que a Igreja é a arca segura e inviolável da verdade revelada e transmitidas pelos Apóstolos e os Padres.


*A aproximação entre a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católico-romana, desde o encontro do Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I, em Jerusalém, em 1964, e a suspensão das excomunhões de 1054, em 1965, conduziu a viver de maneira crescente numa perspectiva de unidade.

É característica de João Paulo II falar da Igreja Ortodoxa, de sua teologia, de sua espiritualidade, de sua história, como poderemos fazer no dia em que seja restabelecido a unidade.

Já em 1981, o XVI centenário do I Concílio de Constantinopla (381), nos deu a ocasião de comemorá-lo, de algum modo, juntos. Em 1987, o XII centenário do II Concílio de Nicéia (787), de novo nos deu a ocasião para que ambas as Igrejas voltassem juntas o olhar para um momento importante da história comum.

Em Nicéia II foram postas as bases doutrinais para se resolver a questão da veneração das imagens ou “ícones”. Se bem que a Igreja Católico-romana segue fielmente esta tradição, precisa, contudo, o convite da complementariedade da Igreja do Oriente.

Nicéia II encontrou oposição decidida da corte carolíngia. A ruptura da Reforma, no século XVI resultou, no Ocidente, em muitos casos, num verdadeiro iconoclasmo.

Certa devoção de tempos ainda não tão afastados havia empobrecido e banalizado o mundo das imagens sagradas. E, não faltou, depois do Vaticano II, uma reação que ameaçava cair num novo iconoclasmo.

O Patriarca Dimítrios I de Constantinopla, junto com os metropolitas de seu Sínodo, publicou em 14 de setembro de 1987, festa da Exaltação da Santa Cruz, uma encíclica que, comemorando Nicéia II, quer fazer presente “a todos os fiéis da Igreja” o sentido teológico, a função e o uso dos “ícones”.

Parece importante recordar que “ícone” quer dizer simplesmente “imagem”. Creio que conviria preferir o termo “imagem” para não dar a impressão de que se trata de uma coisa característica e até exclusiva da Igreja do Oriente. Desde os afrescos de nossas igrejas românicas até nossos dias, a veneração das imagens sagradas é parte de nossa liturgia. E convém que esteja integrada justamente, e que não fique abandonada à devoção popular, em seu sentido mais pobre.

Nicéia II é o último Concílio reconhecido como ecumênico pela Igreja Ortodoxa. É, pois, a última referência comum do dogma para a Igreja do Ocidente e do Oriente. A encíclica do Patriarca de Constantinopla nos oferece uma possibilidade muito concreta de aprendermos uns dos outros. Ainda que, com formas artísticas diferentes, temos de ser fiéis à mesma doutrina (Bartolomeu Ubach).

O II Concílio de Nicéia

3. O sétimo Concílio Ecumênico, reunido sob a convocação da piedosíssima imperatriz Irene e pelo Patriarca Tarasios, de santa memória, no ano de 787, em Nicéia, que congregou 367 Padres teóforos vindos de todo o Oriente e representantes do Ocidente, ocupa um lugar privilegiado na extensa série de atos da Igreja una e indivisa realizados sob a inspiração divina.

Constituiu uma etapa de primeira importância para a vida da Igreja e de todos os fiéis, já que teve como objetivo último “a tradição inspirada por Deus da Igreja católica receba sua autoridade de uma decisão comum” (Definição do II Santo e Grande Concílio Ecumênico de Niceia, Mansi XIII, 276).

4. Ao celebrar a comemoração do XII centenário deste Concílio, filhos muito amados no Senhor, nossa mãe, a Igreja, deseja sublinhar esta importância especial e por de relevo todos os pontos que dele derivam, tanto para a garantia da fé de nossos padres nos ícones como para a edificação dos fiéis da igreja, espalhados por toda a terra.

O movimento iconoclasta

4. Já conheceis, filhos e irmãos, as condições sob as quais este concílio foi convocado em Nicéia e os fatos particularmente trágicos que lhe precederam e que deram lugar ao movimento ímpio da iconoclastia. Lutar contra os ícones havia se tornado a essência do ensinamento e das ações dos imperadores inimigos de Deus, de seus maus conselheiros, de bispos e sacerdotes que tropeçavam nos fundamentos da fé, de altos dignitários da corte, de chefes militares e de uma parte dos fiéis.

Este movimento iconoclasta culminou com uma severa perseguição que durou mais de meio século e que provocou inúmeras desgraças na Igreja e na vida religiosa de seus fiéis.

6. Diversas heresias do passado haviam sido reavivadas na iconomaquia. Tendências maniquéias, gnósticas, docetistas e elementos nestorianos e monofisitas com ensinamentos heréticos recentes, como a heresia pauliciana, sobretudo, elementos hostis ao cristianismo (judaísmo, islam) que assumiam uma postura contra a representação de Deus. Recordando assim uma tradição do Oriente no cristão: tudo isto constituía o movimento iconoclasta e proporcionava as bases ideológicas para uma guerra horrível declarada contra os ícones e contra aqueles que os veneravam.

7. Certamente que não faltavam, de quando em quando, na Igreja excessos na expressão do culto aos ícones. As fontes da época os descrevem e os apresentam como as causas da iconomaquia. Tais exageros eram, naturalmente, considerados como ocasiões para por em marcha, a partir do interior, a loucura iconoclasta.

Contudo, temos que reconhecer que a iconomaquia foi um movimento que provinha de causas muito mais profundas, históricas, sociais e hostis à Igreja.

8. Seja como for, examinando do ponto de vista eclesial e teológico, o movimento iconoclasta, inconscientemente docético, impregnado de fato dos elementos já assinalados acima, nos quais se misturavam ideias heréticas com influências não cristãs contrárias à representação da Divindade, havia se proposto como objetivo, através do ensino e das ações, a destruição da realidade da encarnação divina e a negação da natureza divino-humana do Senhor, da maternidade da Mãe de Deus, da honra dada aos santos, da possibilidade de uma santificação da vida e da matéria, da passagem das coisas terrenas às realidades celestiais e divinas por meio da oração, da contemplação, da participação na Divindade e, em suma, de tudo o que era sagrado na Igreja e na vida, assim como o que se encontrava no centro de sua espiritualidade no Oriente ortodoxo.

“A iconomaquia declarou guerra não aos ícones, mas aos santos”, afirmava de forma lapidar São João Damasceno (Defesa dos ícones, Discurso I, 19: PG 04, 1249).

9. Porém, sem dúvida, além de qualquer outra ideia, a iconomaquia lutou com um furor hostil contra Cristo, para destruir a santa tradição dos ícones do Senhor e, com ela, a cristologia ortodoxa, buscando, acima de tudo e a qualquer preço fazer prevalecer sua própria cristologia particular, estranha e hostil às dos Concílios ecumênicos e, particularmente, a do IV Concílio reunido em Calcedônia.

Segundo a concepção cristológica dos iconômacos, a representação de Cristo sobre um ícone é inaceitável, já que as duas naturezas de Cristo, unidas na única pessoa, excluem, segundo eles, toda representação, tanto de sua natureza divina (já que o ser divino é inconcebível e indescritível) como de sua natureza humana, pelo fato de que a imagem criada desta maneira não se distingue em nada de qualquer outra representação humana (coisa que, no caso do Senhor, Filho e Verbo de Deus, é contrária à sua maneira de ser). Se, por outro lado, no ícone se intenta representar a natureza humana na medida em que está unida à divina, isto leva, segundo eles, a outro excesso que consiste na confusão do conceito de “união” das duas naturezas.

10. Destes princípios que dominam o pensamento e o sistema teológico dos iconômacos, deduziam a impossibilidade de qualquer representação do Senhor e, consequentemente, de toda a representação em ícones de outros santos personagens.

Assim que, no diz respeito à Mãe de Deus e aos santos, a doutrina iconômaca ensinava que suas reproduções pictóricas se referiam necessariamente tão somente à sua existência terrestre, e não a sua glória celestial, o que fazia dos ícones simples representações materiais de pessoas, desprovidas de glória e de esplendor, sem nenhum vestígio de luz divina; e que os ícones eram inúteis e estranhos à boa tradição, e sua veneração em nada diferia, segundo eles, de idolatria mais grosseira.

O VII Concílio ecumênico afirma a esse respeito que (Os iconômacos) “ousaram criticar o ornamento digno de Deus, os santos objetos do culto... não distinguindo o que é santo do que é profano, pondo o ícone do Senhor e de seus santos na mesma categoria das imagens dos ídolos satânicos” (Definição, Mansi XIII, 376).

Doutrina eclesial sobre os ícones

11. A isto a tradição ortodoxa opõe sua própria teologia do ícone, que se fundamenta na compreensão correta do dogma cristológico, em conformidade, sobretudo, com a definição dogmática do IV Concílio ecumênico de Calcedônia para as representações do Senhor e dos diversos momentos de sua vida nos quais aparece em sua glória teofânica. Em conformidade ainda com a interpretação correta do ensinamento da Igreja acerca da matéria e espírito, essência e energias, incriado e criado, celeste e terrestre, eterno e finito, modelo e sua representação; em conformidade, finalmente, com a possibilidade do encontro com o divino e da passagem a este através do original representado em especial no caso dos ícones dos santos e dos anjos de Deus.

12. Com efeito, a tradição oriental conduz de maneira definitiva à realidade do ícone. Esta tradição ensina o valor teológico da expressão estética da encarnação divina, pondo assim a imagem à serviço da economia de Deus. Confere ao ícone uma função especial no contexto do que é transcendente nas relações entre Deus e o homem. E reconhece a utilidade espiritual do ícone na vida cristã como “Bíblia dos iletrados” segundo João Damasceno que afirma: “O que é a Bíblia para as pessoas instruídas é o ícone para os analfabetos; e o que é a palavra para o ouvido, é o ícone para a vista; estamos ligados ao ícone pela inteligência” (J. Damasceno, op. cit. 1,17, PG 94, 1258).

13. A tradição ortodoxa vai além: declara que, através do ícone, é a manifestação da presença e da hipóstasis divina o que se desvela, e que são deixados de lado ou na penumbra todos os detalhes exteriores acessíveis aos sentidos. De todos estes detalhes o ícone só conserva o que é estritamente necessário para reconhecer a historicidade de um fato ou da dimensão espiritual da pessoa de um santo. E que, estes dados, totalmente purificados e desmaterializados, pertencem mais a esfera celestial que ao ambiente natural.

14. A pessoa representada no ícone é um ser que pertence à natureza, mas que já não lhe está submetido. Não é um símbolo, como se pode deduzir do conteúdo muito claro do cânon 82 do Concílio ecumênico “in Trullo” que afirma: “ Decretamos, pois, que é necessário reconstruir os traços humanos de Cristo, nosso Deus, o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Como a forma de todos os seres pintada em cores, deve-se, doravante, pintar o ícone de Cristo em vez de representa-lo sob os traços de um cordeiro tal como era feito noutro tempo. Por esse procedimento compreendemos a sublime humilhação do Deus Verbo e seremos levados a nos recordar de seu ministério como pessoa humana, de sua paixão e de sua morte, e da redenção do mundo que por ela conseguiu” (G. Rallis y M. Podis, Colección de los santos cânones, vol. 2, Atenas 1852, 493).

Eis por que o ícone representa a pessoa sagrada, não em suas proporções naturais ou simplesmente em uma expressão simbólica em vez de sua semelhança humana, mas em sua dimensão gloriosa e celestial. O olho do iconógrafo ortodoxo passa através dos diferentes caminhos da ascese, penetra no “sublime jejum dos olhos” e tende a coincidir totalmente com a contemplação do elemento transcendente tal como é revelado à Igreja na dimensão do espírito. Contrariamente à tradição ocidental, na qual observamos uma diferenciação e uma distância entre a matéria e o espírito, no Oriente ortodoxo a realidade do ícone conseguiu harmonizar estes dois elementos, espírito e matéria, na inteligência, o que caracteriza a particular dialética de nossa espiritualidade e encontra no ícone sua expressão artística perfeita e inspirada.

15. Por todas essas razões, a imagem de nossa tradição converte-se na forma mais poderosa que os dogmas e a pregação assumem, evoluindo e criando obras segundo as sublimes regras da contemplação religiosa. Estas contemplações podem ser perfeitamente compreensíveis nas representações de Jesus, homem e Senhor.

Com toda razão, observa-se que o Verbo de Deus no qual “habita a plenitude da divindade” (Cl 2,9), o Verbo prometido e revelado, que falou, foi tocado e escutado, está integramente contido nas sagradas Escrituras. O mesmo Verbo, tomando a forma arquitetural na arte de construir, culmina no santo edifício do templo (a igreja).

Cantado e apresentado no cenário da sinaxe eucarística, o Verbo constitui a santa Liturgia. Este Verbo se oferece misticamente à contemplação e à teologia da visão sob a forma do ícone único e unificado de Cristo do qual a Igreja conservou intacta a memória, e que para Dionísio Areopagita é o ícone apofático do Senhor, a forma das formas, a forma do inacessível.

16. O apóstolo Paulo formula muito bem o fundamento cristológico do ícone: “Cristo é a imagem visível (eikón) do Deus invisível” (Cl 1,15). Em outras palavras, a humanidade visível do Senhor é a imagem de sua divindade indivisível, ou – para utilizar uma fórmula mais breve – “o aspecto visível do elemento invisível na divindade”.

De acordo com o que o que foi dito acima, a imagem (eikón) do Senhor aparece como a imagem de Deus e do homem, ou seja, como a representação do Deus-homem. O raciocínio subjacente aqui é que, já que o Filho é, por sua divindade a imagem consubstancial ao homem criado a imagem e semelhança de Deus, torna-se (e permanece desde a sua encarnação e até o final dos tempos) em imagem fiel de Deus. É por esta razão que o afirma claramente: “Aquele que me viu, viu também o Pai” (Jo 14,9). Isto significa que as duas naturezas unidas na única hipóstase do Senhor, nos oferece a única imagem do Deus-homem Jesus, uma imagem que expressa Deus mesmo, ainda que Este seja todo inconcebível e indescritível.

17. O Senhor é a imagem de toda imagem, o arquétipo que engloba a totalidade da essência divina. São João Damasceno diz: “Os ícones são as partes visíveis do que em si é invisível e não representável, e que apenas é representado corporalmente para permitir que seja compreendido de um modo apenas perceptível... Já que as qualidades invisíveis de Deus são percebidas de maneira inteligível em suas obras a desde a criação do mundo (Rm 1,20) Com efeito, nós vemos nas coisas criadas imagens (ícones) que nos recordam de modo apenas perceptível as aparições divinas” (op. Cit., 1,11, PG 94, 1241) Assim pois, temos a Deus (que é impossível de descrever e de representar) unicamente pela imagem de sua hipóstase divino-humana: seu Filho e Verbo.

Este “esquema teológico contraditório”, por assim dizer, é justificado por São Gregório Palamas do seguinte modo: “Deus, que é desconhecido e inconcebível, totalmente transcendente, segundo a sua essência, torna-se, ao mesmo tempo, num ser participável no plano empírico, já que é como o que é e será, o que está presente em todas as suas energias, as que a divina encarnação, o Filho encarnado, faz participáveis eternamente para o homem que verá o Senhor em sua segunda vinda. O homem contemplará então este “rosto”, esta “face” da divina auto-revelação. Transfigurado na glória do Senhor, todo o homem justificado verá a Deus face-a-face. Já que “Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido (1 Cor 13,12). E, este rosto, esta face, será a mesma que a do Verbo encarnado, que “é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda a criação” (Col 1,15; 2Cor 4,4)

18. Portanto, a hipóstase divina e humana do Senhor é que torna visível na imagem o lado invisível de Deus. “Somente quando vês (diz São João Damasceno) o incorporal tornado homem para ti é que conseguirás representar a réplica da forma humana. Somente quando o invisível se torne visível na carne, poderás captar a semelhança do que viste. Somente quando o incorporal e informe, o inquantificável e incomensurável, o que está além de toda medida pela superioridade de sua natureza... se reveste da forma de escravo e se deixa conter nela, poderás traçar e oferecer, pintado sobre superfícies lisas para que todos possam contemplá-lo, o que se dignou fazer-se visível” (op. Cit., I,10, PG 94, 1240).

O Ícone de Cristo

19. O ícone de Cristo testemunha uma presença, sua própria presença, que permite chegar a uma comunhão de participação, a uma comunhão de oração e de ressurreição, a uma comunhão espiritual, a um encontro místico com o Senhor pintado em imagem. Certamente que o ícone do Senhor não é o próprio Cristo como na Eucaristia o pão é seu Corpo e o vinho é seu Sangue. No ícone estamos diante da presença de sua hipóstase, que não altera nem modifica em nada a matéria ou as cores, ou o pincel, ou os desenhos exteriores e as formas as quais correspondem os desenhos. Contudo, este ícone reproduz de maneira hipostática a semelhança e a identidade de Cristo que está representado nele, o que caracteriza toda e qualquer imagem sua. Todo o mistério do ícone está contido nessa semelhança dinâmica e misteriosa que remete ao original, isto é, ao ser divino e humano do Senhor.

20. “O ícone (afirma ainda São João Damasceno) é uma representação que reproduz fielmente o original, mesmo quando haja qualquer diferença em relação a ele; já que o ícone não é totalmente semelhante ao arquétipo, pois o ícone vivente, natural e totalmente fiel do Deus invisível é somente o Filho que leva em si mesmo a Pai todo inteiro, que tem uma identidade perfeita com Ele” (op. Cit., 1,9, PG 94, 1240).

Assim, pois, todo o ícone de Cristo representa e inclui a hipóstase do Senhor, e esta hipóstase é justamente o elemento que, através dele, irradia para o exterior. E, graças a atração e atração que exerce, converte-se em meio que remete ao modelo, que testemunha e anuncia a presença do protótipo.

21. O VII Concílio ecumênico se expressa claramente sobre este ponto: “... Uma das naturezas é indescritível e a outra é descrita e contemplada no único ícone de Cristo” (Mansi XIII, 244: Intervenção do diácono Epifânio). E isso para que seja proclamado a todos que, por decisão deste Concílio, “ fazendo o ícone do Senhor, confessamos a carne deificada do Senhor e não reconhecemos no ícone mais do que um ícone que apresenta a imitação do modelo. Disto recebe seu nome e é o único que participa de sua essência: por isso é venerável e santo ícone” (ibid), tal como diz o hinógrafo: “O ícone daquele que se encarnou é para nós uma glória, forma venerada com devoção, porém, não deificada”.

22. A explicação dada para este ponto por São João Damasceno é semelhante, já que afirma: “Em outro tempo, Deus se revelou na carne e entrou em contato com os homens; eu represento, pois, por meio de um ícone, o que vejo de Deus. Não venero a matéria, venero o Criador da matéria, o que se fez matéria e operou minha salvação pela matéria. Não deixarei de respeitar a matéria pela qual foi operada minha salvação (op. Cit., 1,16, PG 94, 1245).

A honra tributada ao ícone passa ao original

23. Por isso, e segundo a interpretação que acabamos de dar do ensinamento da Igreja acerca dos ícones, compreendemos melhor a inspiração divina do conteúdo da definição dogmática a que chegaram os Padres do VII Concílio ecumênico: “Definimos com toda a exatidão e consciência que, ao lado da reprodução da preciosa cruz vivificante, convém que se dê um lugar aos santos e veneráveis ícones , feitos com cores, em mosaico ou com outros materiais apropriados, nas santas igrejas de Deus, nos objetos de culto e nos ornamentos sagrados, nas paredes e sobre tábuas de madeira, nas casas e nas ruas; tanto o ícone de Nossa Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo, como o de Nossa Senhora Puríssima, a Santa Mãe de Deus, como os dos veneráveis anjos e de todos os homens santos e piedosos. E que, quanto mais contemplados e representados sejam nos ícones, mas se elevam os que os contemplam para a memória e o desejo de seus protótipos. Pelo que, o beijo nos ícones tem o sentido, segundo a nossa fé, de uma veneração, e não de um culto no sentido estrito do termo, porque o culto não se deve dirigir senão à natureza divina. A veneração mencionada é semelhante a que se presta à verdadeira e vivificante Cruz, aos santos Evangelhos e a outros objetos sagrados. A todas estas coisas se deve oferecer incenso e velas acesas, e assim se lhes honra segundo a piedosa...

(...)

Fonte: Cuadernos Phase
Centre de Pastoral Litúrgica - Barcelona
Disponível em: GoogleBooks
Tradução: pe. André Sperandio

Carta Apostólica Duodecimum Saeculum do Papa João Paulo II ao Episcopado da Igreja Católica, sobre a veneração das Imagens, por ocasião do XII Centenário do II Concílio de Nicéia

Veneráveis Irmãos, saúde e Bênção Apostólica!

1. O décimo segundo centenário do II Concilio de Nicéia (a. 787) foi objeto de numerosas comemorações eclesiais e acadêmicas, as quais também esta Sé Apostólica se associou [1]. O acontecimento foi celebrado igualmente com a publicação de uma Encíclica de Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla e do Santo Sínodo [2], iniciativa que evidencia a importância teológica e o alcance ecumênico, ainda atuais, do sétimo e último Concílio plenamente reconhecido pela Igreja católica e pela Igreja ortodoxa. A doutrina definida por este Concílio quanto a legitimidade da veneração dos ícones (imagens) na Igreja merece também ela uma atenção especial, não só pela riqueza das suas implicações espirituais, mas também pelas exigências que ela impõe em todo o âmbito da arte sacra.

O relevo dado pelo II Concílio de Nicéia ao assunto da Tradição, e mais precisamente da tradição não escrita, constitui para nós católicos, assim como para os nossos irmãos ortodoxos, um convite a percorrermos de novo juntos o caminho da Tradição da Igreja não dividida, para reexaminar à sua luz as divergências, que os longos séculos de separação acentuaram entre nós, e para reencontrar; conforme o que Jesus pediu ao Pai (cf. Jo 17,11.2021), a comunhão plena na unidade visível.

2. O Patriarca de Constantinopla São Tarásio, moderador do II Concílio Niceno, ao apresentar ao Papa Adriano I o relatório do desenrolar do Concílio, escrevia: "Depois de termos todos ocupado o próprio lugar, nós estabelecemos ter Cristo como (nosso) chefe. Com efeito, o Santo Evangelho foi colocado em cima dum trono, como convite a todos os presentes a julgarem segundo a justiça" [3]. O fato de se ter constituído Cristo como presidente da assembleia conciliar, que se reunia no seu nome e sob a sua autoridade, foi um gesto eloquente para afirmar que a unidade da Igreja não pode realizar-se a não ser na obediência ao seu único Senhor.

3. Os imperadores que tinham convocado o Concílio, Irene e Constantino VI, tinham convidado o meu Predecessor Adriano I, "enquanto verdadeiro primeiro Pontífice, que preside no lugar e na sede do santo e muito venerável Apóstolo Pedro" [4]. Ele fez-se representar pelo Arcebispo da Igreja romana e pelo Hegúmeno (Abade) do mosteiro grego de São Sabas em Roma. Para assegurar a representatividade universal da Igreja, era requerida também a presença dos Patriarcas orientais [5]. Uma vez que os seus territórios se encontravam já sob o domínio muçulmano, os Patriarcas de Alexandria e de Antioquia enviaram conjuntamente uma carta comum a São Tarásio; e o Patriarca de Jerusalém enviou uma carta sinodal. Uma e outra foram lidas no Concílio [6].

Admitia-se então comumente que as decisões de um Concílio ecumênico eram válidas somente se o Bispo de Roma nelas tivesse colaborado e se os Patriarcas orientais tivessem manifestado o seu acordo [7]. Neste processo o papel da Igreja de Roma era reconhecido como insubstituível [8]. Assim o II Concílio Niceno aprovou a explicação do Diácono João, segundo a qual a assembleia dos iconoclastas, realizada em Hiéria em 754, não era legítima, porque "o Papa de Roma e os Bispos que estão à sua volta não tinham colaborado nela, nem através de legados, nem mediante uma carta encíclica, segundo a lei dos Concílios"; e "os Patriarcas do Oriente... e os Bispos que estão com eles não lhe tinham dado o seu consenso" [9]. Por outro lado, os Padres do II Concílio Niceno declararam que "acolhiam, acatavam e seguiam" a Carta enviada pelo Papa Adriano aos imperadores [10] assim como a dirigida ao Patriarca. Estas Cartas foram lidas, em latim e na sua tradução grega, e todos foram convidados a dar-lhes individualmente o próprio assenso [11].

4. O Concílio saudou unanimemente nas pessoas dos legados pontifícios "a santíssima Igreja de Roma, ou seja, do Apóstolo São Pedro" [12] e da "Cátedra apostólica" ([13], adotando a fórmula romana [14]; e o Patriarca Tarásio, escrevendo ao meu predecessor em nome do Concílio, reconhecia nele aquele que "herdou a Cátedra do Apóstolo São Pedro", e que, "revestido do Sumo Pontificado, tem a subida honra de presidir, legitimamente e por vontade de Deus, à sagrada Hierarquia" [15].

Um dos momentos decisivos no decorrer do Concílio parece ter sido aquele em que ele se pronunciou a favor do restabelecimento do culto das imagens, quando os participantes acolheram, em unanimidade, a proposta dos legados romanos de fazer colocar no meio da assembleia um venerável ícone, para que os Padres pudessem prestar-lhes a sua veneração [16].

O último Concílio ecumênico reconhecido quer pela Igreja católica quer pela Igreja ortodoxa é um exemplo notável de "sinergia" entre a sede de Roma e uma assembleia conciliar. Ele inscreve-se na perspectiva da eclesiologia patrística de comunhão, fundamentada na Tradição, como o Concílio Ecumênico Vaticano II, justamente, uma vez mais pôs em evidência.

5. O Concílio Niceno II afirmou solenemente a existência da "tradição eclesiástica escrita e não escrita" [17], como referência normativa para a fé e para a disciplina da Igreja. Os Padres manifestaram o seu desejo de "conservar intactas todas as tradições da Igreja, que lhes foram confiadas, sejam elas escritas ou não escritas. Uma delas consiste precisamente na pintura dos ícones, em conformidade com a carta da pregação apostólica" [18]. Contra a corrente iconoclasta, que também tinha apelado para a Escritura e para a Tradição dos Padres, especialmente para o pseudo-sínodo de Hiéria de 754, o II Concílio de Nicéia sanciona a legitimidade da veneração das imagens, confirmando "o ensino divinamente inspirado dos santos Padres e da Tradição da Igreja católica" [19].

Os Padres do II Concílio Niceno entendiam a "tradição eclesiástica" como tradição dos seis Concílios ecumênicos precedentes e dos Padres ortodoxos, cujo ensino era acolhido comumente na Igreja. O Concílio, deste modo, definiu como sendo de fé aquela verdade essencial, segundo a qual a mensagem cristã é "tradição", paràdosis. A medida que a Igreja se foi desenvolvendo, no tempo e no espaço, a sua inteligência da Tradição, da qual é portadora, conheceu também ela as fases de um desenvolvimento, cuja investigação constitui, para o diálogo ecumênico e para toda a reflexão teológica autêntica, um percurso obrigatório.

6. Já São Paulo nos ensina que, para a primeira geração cristã, a paràdosis consiste na proclamação do Acontecimento de Cristo e do seu significado atual, que realiza a Salvação mediante a ação do Espírito Santo (cf. 1Cor 15,38; 11,2). A tradição das palavras e dos atos do Senhor foi recolhida nos quatro Evangelhos, mas sem se exaurir neles (cf. Lc 1,1; Jo 20,30; 21,25). Esta tradição primigênia é tradição "apostólica" (cf. 2Ts 2,1415; Jd 17; 2Pd 3,2). Ela diz respeito não apenas ao "depósito" da "sã doutrina" (cf. 2Tm 1,612; Tt 1,9), mas também às normas de comportamento e às regras da vida comunitária (cf. 1Ts 4,17; 1Cor 4,17; 7,17; 11,16; 14,33). A Igreja lê a Escritura à luz da "regra da fé" [20], quer dizer, da sua fé viva mantida coerente com o ensino dos Apóstolos. Aquilo que a Igreja sempre acreditou e praticou, ela considera o justamente como "Tradição apostólica". Santo Agostinho dizia: "Uma observância mantida pela Igreja inteira e conservada sempre, que não tenha sido instituída pelos Concílios, acaba por não ser outra coisa, com pleno direito, senão uma tradição que emana da autoridade dos Apóstolos" [21].

De fato, as tomadas de posição dos Padres no decorrer dos grandes debates teológicos dos séculos IV e V, a importância crescente da instituição sinodal a nível regional e universal, fizeram com que, pouco a pouco, a tradição se tornasse a "tradição dos Padres" ou "tradição eclesiástica", entendida como desenvolvimento homogêneo da Tradição apostólica. Foi por isto que São Basílio Magno fez apelo às "tradições não escritas", que são as "tradições dos Padres" [22], para fundamentar a sua teologia trinitária, e sublinha a proveniência dupla da doutrina da Igreja "do ensino escrito, bem como da tradição apostólica" [23].

O próprio Concilio Niceno II, que cita oportunamente São Basílio a propósito da teologia das imagens [24], invocou também a autoridade dos grandes doutores ortodoxos, como São Gregório Nazianzeno, São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria. São João Damasceno pôs também ele em relevo a importância para a fé das "tradições não escritas", isto é, não contidas na Escritura, ao declarar: "Se alguém se apresentar com um Evangelho diferente daquele que a Igreja católica recebeu dos Santos Apóstolos, dos Padres e dos Concílios e que ela conservou até aos nossos dias, não o escuteis" [25].

7. Mais próximo de nós, o Concílio Vaticano II apresentou novamente em plena luz a importância da "tradição que provém dos Apóstolos". De fato, "a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus, enquanto consignada por escrito sob a inspiração do Espírito divino; a Sagrada Tradição, por seu lado, é portadora da Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e transmite a integralmente aos seus sucessores" [26]."Ora, aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos compreende tudo quanto contribui para que o Povo de Deus viva santamente e para o aumento da sua fé" [27]. Juntamente com a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição constitui "um único depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja". A interpretação autêntica "da Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição foi confiada unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo" [28]. É mediante uma fidelidade igual ao tesouro comum da Tradição que remonta aos Apóstolos, que as Igrejas se esforçam hoje por aprofundar os motivos das suas divergências e as razões que há para as superar.

8. A terrível "controvérsia sobre as imagens", que dilacerou o império bizantino sob os imperadores isáuricos Leão III e Constantino V, entre os anos de 730 e 780, e de novo sob Leão V, de 814 a 843, explica-se principalmente pelo debate teológico que, desde o início, foi o seu fulcro.

Sem ignorar o perigo de um ressurgimento sempre possível das práticas idolátricas do paganismo, a Igreja admitia que o Senhor, a Bem-aventurada Virgem Maria, os Mártires e os Santos fossem representados em formas pictóricas ou plásticas para favorecer a oração e a devoção dos fiéis. Era claro para todos, segundo a fórmula de São Basílio, recordada pelo Concílio Niceno II, que "a honra prestada ao ícone é dirigida ao protótipo" [29]. No Ocidente, o Papa São Gregório Magno tinha insistido no caráter didático das pinturas nas igrejas, úteis para que os analfabetos, "ao contemplá-las, possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros", e acentuava que esta contemplação devia levar à adoração da "única e onipotente Trindade Santíssima" [30]. Foi neste contexto que se desenvolveu, de maneira particular em Roma durante o século VIII, o culto das imagens dos Santos, dando lugar a uma produção artística admirável.

O movimento iconoclasta, rompendo com a tradição autêntica da Igreja, considerava a veneração das imagens como um retorno à idolatria. Não sem contradição e ambiguidade, ele proibia a representação de Cristo e as imagens religiosas em geral, enquanto continuava a admitir as imagens profanas, em particular as imagens do imperador, com os sinais de reverência que a elas andavam ligados. A base da argumentação dos iconoclastas era de natureza cristológica. Como pintar Cristo que unia na sua Pessoa, sem as confundir nem as separar, a natureza divina e a natureza humana? Por outro lado, seria impossível representar a sua divindade inapreensível; por outro, representa-lo na sua humanidade somente seria dividi-lo separando n'Ele a divindade da humanidade. Escolher uma ou outra destas duas vias levaria às duas heresias cristológicas opostas do monofisismo e do nestorianismo. Com efeito, quem pretendesse representar Cristo na sua divindade condenar-se-ia a absorver nessa representação a sua humanidade; e quem mostrasse apenas um retrato de homem, acabaria por ocultar que ele é também Deus.

9. O dilema posto pelos iconoclastas envolvia algo que ia muito além da questão da possibilidade de uma arte cristã; punha em causa toda a visão cristã da realidade da Encarnação e, portanto, das relações de Deus com o mundo, e da graça com a natureza, numa palavra, a especificidade da "Nova Aliança", que Deus concluiu com os homens em Jesus Cristo. Os defensores das imagens advertiram muito bem isso: segundo uma expressão do Patriarca de Constantinopla São Germano, ilustre vítima da heresia iconoclasta, era toda "a economia divina segundo a carne" [31] que era posta de novo em questão.

Com efeito, ver representado o rosto humano do Filho de Deus, "imagem de Deus invisível" (Cl 1,15), é ver o Verbo feito carne (cf. Jo 1,14), o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29). Portanto, a arte pode representar a forma, a efígie do rosto humano de Deus e levar aquele que o contempla ao mistério inefável do mesmo Deus feito homem para a nossa salvação. Assim, o Papa Adriano pôde escrever: "Graças a um rosto visível, o nosso espírito será transportado, por um atrativo espiritual, até à majestade invisível da divindade, através da contemplação da imagem em que está representada a carne, que o Filho de Deus se dignou assumir para a nossa salvação. E, sendo assim, nós adoramos e conjuntamente louvamos, glorificando o em espírito, este mesmo Redentor, porque, como está escrito, 'Deus é Espírito' e é por isso que nós adoramos espiritualmente a sua divindade" [32].

O Concílio Niceno II, portanto, reafirmou solenemente a distinção tradicional entre "a verdadeira adoração (latria)" que, "segundo a nossa fé, é devida somente à natureza divina" e "a prosternação de honra" (timetiké proskynesis), que é prestada aos ícones, porque "aquele que se prostra diante do ícone, prostra-se diante da pessoa (a hipóstase) daquele que na figuração é representado" [33].

A iconografia de Cristo implica, portanto, toda a fé na realidade da Encarnação e no seu significado inexaurível para a Igreja e para o mundo. Se a Igreja costuma pô-la em prática, fá-lo porque está convencida que o Deus revelado em Jesus Cristo resgatou realmente e santificou a carne e o inteiro mundo sensível, ou seja, o homem com os seus cinco sentidos, a fim de lhe permitir renovar-se constantemente ''a imagem d'Aquele que o criou" (Cl 3,10).

10. O Concílio Niceno II, por conseguinte, sancionou a tradição segundo a qual "devem expor-se as venerandas imagens sacras, manufaturadas com tintas, com mosaico e com outras matérias idôneas, nas igrejas consagradas a Deus, nos vasos e paramentos sagrados, nas paredes e nos retábulos, nas casas e nas ruas; e isto aplica-se tanto à imagem de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo e à de Nossa Senhora Imaculada, a santa Theotokos, como às imagens dos veneráveis anjos e de todos os homens santos e piedosos" [34]. A doutrina deste Concilio sustentou a arte da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, inspirando-lhe obras de uma beleza e de uma profundidade sublimes.

Em particular, a Igreja grega e as Igrejas eslavas, apoiando-se nas obras dos grandes teólogos São Nicéforo de Constantinopla e São Teodoro Studita, apologistas do culto das imagens, consideraram a veneração do ícone como parte integrante da Liturgia, à semelhança da celebração da Palavra. Como a leitura dos livros materiais permite a audição da Palavra viva do Senhor, assim a exposição de um ícone figurativo permite àqueles que o contemplam ter acesso aos mistérios da Salvação mediante a vista. "Aquilo que por um lado é manifestado pela tinta e pelo papel, por outro, no ícone, é manifestado pelas várias cores e pelos outros materiais" [35].

No Ocidente, a Igreja de Roma distinguiu-se, numa continuidade sem interrupção, pela sua ação a favor das imagens [36], sobretudo no momento crítico em que, entre os anos de 825 e 843, os impérios bizantino e franco se demonstraram ambos hostis ao Concílio Niceno II. No Concílio de Trento, a Igreja católica reafirmou a doutrina tradicional, contra uma nova forma de iconoclastia que então se manifestava. Mais recentemente, o Concílio Vaticano II recordou com sobriedade a posição constante da Igreja a respeito das imagens [37] e da arte sacra em geral [38].

11. Desde há alguns decênios para cá nota-se um surto de interesse pela teologia e pela espiritualidade dos ícones orientais; isso é sinal de ritual da arte autenticamente cristã. A este propósito, não posso deixar de exortar os meus Irmãos no Episcopado a "manterem o uso de expor imagens nas Igrejas à veneração dos fiéis" [39] e a empenharem-se para que surjam cada vez mais obras de qualidade verdadeiramente eclesial. O crente de hoje, como o de ontem, há de ser ajudado na oração e na vida espiritual mediante a visão de obras que procurem exprimir o mistério sem nunca o ocultar. É esta a razão pela qual, hoje como no passado, a fé é a indispensável inspiradora da arte da Igreja.

A arte pela arte, que não leve a pensar senão no seu autor, sem estabelecer uma relação com o mundo divino, não encontra espaço na concepção cristã do ícone. Seja qual for o estilo que adote, todo o tipo de arte sacra deve exprimir a fé e a esperança da Igreja. A tradição das imagens mostra que o artista deve ter consciência de cumprir uma missão a serviço da Igreja.

A arte cristã autêntica é aquela que, através da percepção sensível, leva à intuição de que o Senhor está presente na sua Igreja, que os acontecimentos da história da Salvação dão sentido e orientação à nossa vida e que a glória que nos está prometida começa já a transformar a nossa existência. A arte sacra deve tender a proporcionar-nos uma síntese visual de todas as dimensões da nossa fé. A arte da Igreja deve ter a preocupação de falar a linguagem da Encarnação e exprimir, com os elementos da matéria, Aquele que "se dignou habitar na matéria e realizar a nossa salvação através da matéria", segundo a fórmula feliz de São João Damasceno [40].

A redescoberta do ícone cristão ajudará também a tomar consciência da urgência de reagir contra os efeitos despersonalizadores, e às vezes degradantes, das múltiplas imagens que condicionam a nossa vida, na publicidade e nos "mas média"; trata-se de fato de uma imagem que faz chegar até nós o olhar de um Outro invisível e que nos dá acesso à realidade do mundo espiritual e escatológico.

12. Amadíssimos Irmãos: Ao recordar a atualidade da doutrina do VII Concílio Ecumênico, parece-me que estamos perante um chamamento à nossa tarefa primordial de evangelização. A secularização crescente da sociedade mostra que ela está se tornando, em larga escala, alheia aos valores espirituais, ao mistério da nossa Salvação em Jesus Cristo e à realidade do mundo futuro. A nossa tradição mais autêntica, que compartilhamos plenamente com os nossos irmãos ortodoxos, ensina-nos que a linguagem da beleza, posta a serviço da fé, é capaz de atingir o coração dos homens e de os levar a conhecer, a partir de dentro, Aquele que ousamos representar nas imagens, Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, o mesmo, ontem e hoje e por todos os séculos" (Hb 13,8).
A todos dou, de coração, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 4 de dezembro, memória litúrgica de São João Damasceno, Presbítero e Doutor da Igreja, do ano de 1987, décimo do meu Pontificado.

IOANNES PAULUS PP. II


Referências

[1] Especialmente com a Carta de 8 de outubro de 1987, do Cardeal Secretário de Estado ao Presidente da Sociedade Internacional para a História dos Concílios, por ocasião do Simpósio de Istambul (L'Osservatore Romano, ed. quot. 12/13.10.87).

[2] Epi te 1200 è epetèio apo tes syncleoseos tes en Nikai Aghias z'Oikomenikes Synodoy (7871987), Fanar, 14 de setembro de 1987.

[3] J. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima colectio (=Mansi) XIII, 459c.

[4] Mansi XII, 985.

[5] Cf. Mansi XII, 1007.1086 e Monumenta Germaniae Historica (= MGH), (Epistulae Karolini Aevi, t. 3), p. 29. 3033.

[6] Cf. Mansi XII, 11271135 e 11351145.

[7] Segundo o Presbítero João, representante dos Patriarcas orientais, Mansi XII, 990A e XIII, 4A.

[8] Cf. Mansi XII, 1134.

[9] Mansi XIII, 208209.

[10] Mansi XI, 1085.

[11] Cf. Mansi XII, 10851111.

[12] Maisi XII, 994.1041.1114; XIII, 157.204.366.

[13] Mansi XII, 1086.

[14] Cf. carta de Adriano I a Carlos Magno, em: MGH, Epistulae III (Epistulae Merowingici et Karolini Aevi, t. I) p. 587, 5.

[15] Mansi XIII, 463BC.

[16] Cf. Mansi XIII, 200.

[17] Cf. Quartum anatema, em: Mansi XIII, 400.

[18] Horos, in: Mansi XIII, 377BC.

[19] Ibid., 377C.

[20] Cf. Santo Ireneu, Adversus Haereses 1, 10, 1; I, 22. 1; em: Sources Chrétiennes (= SCH) 264, p. 154158; 308310; Tertuliano, De praescriptione 13, 16; em Corpus Christianorum, Series Latina (= CChL), I, p. 197198; Orígenes, Perì Archòn, Pref. 4, 10, em SCh 252, p. 8089.

[21] De Baptismo IV, 24, 31; em: Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (= CSEL) 51, p. 259.

[22] Sobre o Espírito Santo, VII 16, 21.32; IX 22, 3; XXIX 71, 6; XXX 79, 15; em SCh 17 bis, p. 298.300.322.500.528.

[23] Ibid. XXVII 66; 13, p. 478480.

[24] Cf. Horos, in: Mansi XIII, 378E.

[25] Discurso sobre as imagens III, 3, em: PG 94, 13201321; e B. Katter, Die Schriften des Johannes von Damaskos, vol. III (Contra imaginum calumniatores orationes tres), em: "Patristische Texte und Studien" 17, BerlimNova Iorque, 1975, III, 3, p. 7273.

[26] Dei Verbum, 9.

[27] Ibid., 8.

[28] Ibid., l0.

[29] Sobre o Espírito Santo, XVIII 45, 19, em: SCh 17 bis, p. 496; Nicéia II, Horos, em: Mansi XIII, 377E.

[30] Cartas de São Gregório Magno ao Bispo Sereno de Marselha, em: MGH, Gregorii I Papae Registrum Epistularum II, 1, lib. IX, 208, p. 195 e II, 2, lib. XI, 10, p 270271; ou em: CChL 140A, lib. IX, 209, p. 768 e lib. XI, 10, p. 874875.

[31] Cf. Teófano, Chronographia ad annum, 6221, ed. C. de Boor I, Leipzig, 1883, p. 404; ou PG 108, 821C.

[32] Carta de Adriano I aos Imperadores, em: Mansi XII, 1062 AB.

[33] Horos, em: Mansi XIII, 377E.

[34] Ibid., 377D.

[35] Teodoro Studita, Antirrheticus, 1, 10, in: PG 99, 339D.

[36] Cf. Carta de Adriano a Carlos Magno, em: MGH, Epistulae V (Epistulae Karolini Aevi, t. III), p. 557; ou PL 98, 12481292.

[37] Cf. Sacrosanctum Concilium, 111, 1; 125; 128; Lumen Gentium, 51; 67; Gaudium et Spes, 62, 45; e também Código de Direito Canônico, cân. 1255 e 1276.

[38] Sacrosanctum Concilium, 122124.

[39] Ibid., 125.

[40] Discurso sobre as imagens, I, 16, em: PG. 94, 1246A: e ed. Kotter 1, 16, p. 89.

 

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