XI. A Paixão de Cristo em
Nossa Vida
A
Semana da Paixão ou Semana da Vítima Pascal
termo pascha significa passagem e indica o rito do cordeiro pascal, graças
a cujo sangue o anjo destruidor passou diante das casas dos hebreus, mas não
lhes fez mal algum. A semana da Páscoa-passagem não é uma semana de
sofrimento inútil mas, ao contrário, de sofrimento-passagem, de sofrimento
pascal, cuja força, luz e esplendor vêm-nos do sangue do Cordeiro imolado na
cruz. Esse é o motivo pelo qual devemos sofrer juntos esta semana da Paixão.
Todavia, o ir-além graças ao poder do sangue de Jesus significa que, por
meio do sofrimento, nós passamos de uma vida a outra, de uma fé a uma outra.
Cada vez que celebramos os acontecimentos da semana da Paixão, devemos
vivê-los como ocasiões irrepetíveis que nos são oferecidas para obtermos uma
vida mais rica de energias. Durante esta santa semana ouviremos mais vezes
como o Senhor revelou a seus discípulos o secreto plano de amor que, por
decisão pessoal, decidira levar à realização em sua pessoa, como expressão
de um amor mudo e escondido.
Eis que vamos subir a Jerusalém...
e o Filho do homem será entregue aos pagãos,
que o matarão.
(Lc 18, 31-32)
Os discípulos ficaram tristes ao ouvir estas palavras e algum deles condenou
esse projeto: eles não podiam perceber-lhe a enorme grandeza. Mas vós,
irmãos, vós que contemplastes a grandeza da salvação e do amor, conseqüência
de tal bendito plano - o plano de subir a Jerusalém onde o Filho do homem
devia ser preso, insultado e depois morto - como poderíeis opor-vos a esse
plano? Quem poderia ouvir falar desse mistério divino - o mistério da
entrega total ao Pai - sem desejar realizá-lo, seguindo os passos do Senhor
no caminho do Gólgota?
Assim como, externamente, existe apenas sofrimento e aflição, na
ressurreição há alegria, força, ascensão ao céu. E então, quem haveria de
rejeitar viver com o Senhor a semana do sofrimento pascal? Quem quereria
ainda retroceder, julgando muito alto o preço para tão grande salvação? É um
plano cuja vitória está garantida de modo absoluto: façamo-lo nosso, todos
juntos, com amor e fé, cada um segundo as próprias capacidades.
Portanto, avancemos juntos ao longo do caminho do Calvário, cumprindo a
semana da Paixão em vista da passagem. Prometa cada um, no seu coração,
percorrer o caminho: para cada um existe um trajeto particular, um
sofrimento e um amor reservados a ele. Mas todos, todos, vamos além, sem que
ninguém se retire ao longo do caminho, semelhantes a uma fila única, porque
os nossos passos foram marcados com o sangue de um único Cordeiro. É uma
ação santa em Espírito e poder. A Páscoa, eis o que temos ardentemente
desejado: um passar além do olhar do anjo destruidor, um passar das trevas e
da loucura do pecado, do estar sentados nas panelas do desejo, uma passagem
da escravidão e da humilhação do faraó à luz, à salvação, à libertação que
nos foram dadas por meio do sangue de Cristo.
Como é rica a glória da semana da Vítima pascal em que nos é dado realizar
esta passagem! De agora em diante, transformemo-la em sofrimento por causa
do amor, acolhido espontaneamente; nesta semana molhemos com lágrimas o
nosso pão, lavemos com o pranto nosso leito, sem conceder sono às nossas
pálpebras enquanto não passarmos além do vale de treva e de morte, de modo
que Cristo possa resplandecer em nós na sua ressurreição. Ele voltou o
semblante para Jerusalém, absolutamente decidido a realizar este desígnio;
ofereceu a face aos insultos e as costas aos flagelos; não teve nenhuma
hesitação em ir adiante, até a imolação.
Assim, abriu-nos a porta e ofereceu-nos seu projeto: a nós, basta segui-lo!
Um modo
novo de ver o sofrimento
Cristo tinha mostrado sua suprema autoridade sobre a morte fazendo
ressuscitar dos mortos a Lázaro, e Maria tinha ungido seu corpo com um
ungüento precioso, gesto que o Senhor considerou como uma verdadeira unção
em vista da morte. Após esses fatos, Cristo caminhou para a cruz, a fim de
cumprir o evangelho e realizar a obra para a qual viera, enfrentando o
sofrimento e a morte voluntária.
Mas, demos agora uma olhada no primeiro e último dos sete milagres
realizados pelo Senhor - no evangelho segundo João - pois eles estão
intimamente ligados entre si.
O primeiro dos sinais realizados por Jesus, acontece na casa de pessoas que
o amavam e entre gente disposta a nele crer: foi nas núpcias em Caná da
Galiléia, onde o Senhor mudou a água em vinho bom, em resposta ao pedido
apresentado pela virgem Maria, sua mãe.
No final, encontramo-nos ainda na casa de pessoas amadas: Lázaro, Maria e
Marta, pessoas entre as mais leais entre os que acreditavam nele. Jesus, por
causa da súplica de Maria, a irmã de Lázaro, restituiu a vida a seu amigo. É
aqui que manifestou a sua glória, como anota o evangelho. No primeiro
milagre, a única objeção à súplica da Virgem foi que sua hora ainda não
tinha chegado. Mas agora, após três anos ou mais, a hora chegou, e não há
mais lugar para alguma objeção frente aos milagres que realizaria. Também
nesta ocasião, o evangelho nos avisa que Jesus revelou a sua glória.
Acontece sempre assim: somente naqueles que crêem nele e em ninguém mais,
Jesus encontra as ocasiões mais adaptadas para realizar os seus sinais e
manifestar a sua glória.
Exatamente após ter mudado a água em vinho, Jesus imediatamente começou a
ensinar como operar a transformação do próprio homem com um novo nascimento
do alto, do céu, da água e do Espírito, introduzindo-o numa vida nova,
eterna: somente com dificuldade Nicodemos poderia captar esta verdade. Do
mesmo modo, ressuscitando Lázaro dos mortos, Jesus deu um sinal visível de
sua capacidade de ressuscitar os mortos ou, em outros termos, de operar uma
transformação total. Aqui a dificuldade atinge o ápice, também para aqueles
que o rejeitavam: era tal sua falta de fé que, daquele momento em diante,
conspiraram para matar tanto Lázaro quanto Jesus.
Assim, os espasmos da morte começam bem antes da cruz. Mas, que paradoxo! A
paixão do Senhor começa logo após ele revelar sua identidade! Ingressa em
Jerusalém como o Rei de Israel, o senhor do templo ou, segundo as profecias,
como aquele que logo entrará em seu templo (Ml 3,1); mais adiante anota a
profecia: Mas, quem poderá suportar o dia de sua vinda? (Ml 3,2).
Para dizer a verdade, os chefes dos sacerdotes e todos os doutores da lei,
juntamente com os guardiães das coisas sagradas e do ensinamento, não
poderiam suportar tal espetáculo! Não porque Jesus tivesse entrado em
Jerusalém e no templo com uma tão grande glória, mas exatamente pelo motivo
oposto: porque tinha entrado manso e humilde, cavalgando um jumento, e isso
desiludia todas as suas espectativas.
A paixão de Cristo começou com uma rejeição absoluta, uma humilhação e um
ódio extremos. Vem manso e humilde, e isso era incompatível com os sonhos de
Israel mas, neste modo, Cristo passou pelo caminho estreito. Realizava-se
nele a profecia: “Rejeitado das nações, servo dos poderosos” (Is 49,7).
Assim começa, ainda hoje, o caminho da cruz para aqueles que aderem à
verdade. E aqui aparece o paradoxo desde sempre odiado pelas autoridades:
ouvir a verdade da boca de um fraco é algo que não podem tolerar.
Com grande sabedoria, portanto, a Igreja pôs como início da semana da Paixão
o domingo de Ramos, reinvocando o dia em que a honra e a acolhida
demonstradas a Jesus atingiram o ápice, o dia em que a igreja proclama:
“Hosana no altos dos céus, Rei de Israel. Bendito aquele que vem no nome do
Senhor”. Contudo, ao mesmo tempo, a Igreja começa a cantar os salmos com
tons de lamento e a proclamar o evangelho com uma melodia extremamente
comovente, que fere o coração, enquanto os sinais da Oblação estão ainda
ali, sobre o altar.
É deveras surpreendente! Mas essa é a consciência que a Igreja tem de
Cristo, ou melhor, do evangelho. É um paradoxo que vai além da razão, no
qual o desconforto e a aflição mais extremos misturam-se com a máxima
alegria e esperança! A igreja tem consciência de que a rejeição de Cristo,
por parte dos chefes dos sacerdotes, o infligir-lhe o mal, insultá-lo,
anulá-lo na cruz, exatamente essas coisas dão origem a uma alegria inefável
e elevada com vistas à salvação eterna.
A
aceitação do sofrimento
Talvez a realidade mais profunda que pode ser sondada pelo cristão, ao
refletir sobre a paixão e a crucifixão, é que a cruz, para Cristo, foi um
ato voluntário e bem aceito: Por acaso não devo beber o cálice que meu Pai
me deu? (Jo 18,11). Mas, não é só, pois os sofrimentos e a crucifixão não
eram somente voluntários e bem aceitos, mas tinham-se tornado um escopo e um
fim, para cuja realização Cristo tinha vindo: Para isso cheguei a esta hora
(Jo 12,27).
Isso nos induz, enquanto cristãos, a interpretar o sofrimento nestes termos:
o cristão que verdadeiramente crê na cruz não deve abusar da própria
liberdade para evitar o sofrimento. Quem sondou a profundidade e os
mistérios da cruz, concebe o sofrimento como uma parte integrante de sua fé:
espera-o como uma herança apetecida, um desafio que realiza feliz, um fim
pelo qual trabalhar sem medo.
Narra a tradição que um grande medo tomou conta de Pedro quando Nero, diante
de sua proclamação de fé, pronunciou contra ele a sentença de morte por
crucifixão. Pedro livrou-se dos guardas e fugiu. Mas o Senhor apareceu-lhe
em visão e lhe perguntou: “Para onde vais, Pedro? Queres que eu seja
crucificado por ti mais uma vez?” Pedro então foi tomado pela vergonha e
afligido por uma amarga dor: como pôde realizar um ato tão vergonhoso e
trair a cruz de seu Mestre? Assim, imediatamente, retornou à cidade e
entregou-se espontaneamente aos carnífices.
Com isso, a tradição oferece à nossa fé um elemento de extrema importância:
quem se subtrai ao próprio cálice e à sua parte no sofrimento, nada mais faz
do que privar-se a si mesmo da parte que lhe cabe no sofrimento de Cristo; é
como se tivesse necessidade de que Cristo fosse novamente crucificado por
ele.
A mão
amorosa que estende o cálice do sofrimento
Os olhos de Cristo nunca deixaram de reconhecer a mão que lhe oferecia o
cálice do sofrimento. Cristo nunca prestou atenção às mãos malvadas que
movimentavam o martelo e os pregos. Nem deu atenção aos grosseiros e
rancorosos rostos dos chefes dos sacerdotes que urlavam: Crucifica-o,
crucifica-o! (Jo 19,6). Olhou menos ainda para Pilatos, como se fosse uma
autoridade que pronuncia a sentença de morte pela crucifixão. Do mesmo modo,
seus ouvidos não prestaram atenção alguma aos insultos e às palavras de
desprezo que saíam das bocas dos malvados e vingativos fariseus, guardas da
lei e do sábado. Seus olhos estavam fixos unicamente na mão do Pai, a única
que realmente movimentava o martelo e os pregos. Seus ouvidos somente
prestavam atenção à voz do Pai, enquanto pronunciava a sentença de
flagelação e de crucifixão. Cristo dissera a Pilatos com extrema clareza: Tu
não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto (Jo 19,11).
Pilatos pensava que estavam incluídas nas suas faculdades libertar o Senhor
e não crucificá-lo. E foi exatamente aqui que Cristo repreendeu-o
asperamente, pois isso nada mais era que uma pura ilusão. Foi Jesus, e não
Pilatos, quem decidiu o desenvolvimento de todo o processo, da acusação à
defesa, à sentença. Na verdade, Pilatos estava executando aquilo que o céu
lhe ditava! Nada contava a desonesta sentença do sinédrio ou a corrupta lei
romana: de fato, a sentença de sofrimento e de morte na cruz, em primeira e
última instância, tinha sido derramada e misturada com o amor num único
cálice, por obra do Pai que amava o Filho antes da fundação do mundo. E a
origem deste cálice era exatamente o amor de Deus pelo mundo! Por isso, não
era tão amargo como poderia aparecer nem estava misturado, apesar das
aparências, ao ódio do Maligno ou à intriga dos hipócritas. Pelo contrário,
era uma parte escolhida da herança oferecida pela mão do próprio Pai e
continha em si a essência do amor, da ressurreição e da vida.
Para captar em toda a sua grandeza esse exemplo de aceitação do sofrimento,
devemos buscar exemplos mais modestos, com suas pequenas cruzes. Um modelo
desse tipo poderia ser José, o jovem bendito de Deus que não guardou nenhum
rancor pelos irmãos que o tinham atirado num poço e depois o venderam por
dinheiro para que fosse levado para longe, em exílio solitário, no Egito.
Ele ergueu o coração e os olhos a Deus, julgando que aquele fosse seu
destino, proveniente diretamente da mão de Deus. José não viu a pérfida mão
violenta do irmão que o suspendia com as cordas nas profundezas do poço,
enquanto discutiam o preço de seu sangue, pelo qual o haviam vendido aos
ismaelitas. Em tudo isso, de fato, nada mais viu do que a mão invisível, a
mão do próprio Deus que tecia numa única trama todos esse acontecimentos.
Finalmente, sendo manifesta a torpe ação de seus irmãos, ouvimos José que os
consola dizendo: Não fostes vós quem me mandou aqui, mas Deus... Embora
tenhais tramado o mal contra mim, Deus decidiu transformá-lo num bem (Gn
45,8; 50,20).
Cristo veio para elevar experiências menores e exemplos individuais como
esse ao curso universal dos acontecimentos, à lei divina, à grande cruz da
redenção, à aliança entre Deus e a humanidade. Cristo assinou o pacto com o
seu sangue e deu seu Espírito Santo como garantia. Essa aliança consiste na
presença da mão mais misericordiosa que pode existir, a mão de Deus, por
detrás de cada golpe desferido contra nossa tenda terrena. Exatamente ali, a
sua mão está estendida para desenvolver a função do puro amor! A mão
traspassada de Cristo, na qual estava antecipadamente escrito o nosso nome,
tornou-se garantia da nossa salvação: de nossos sofrimentos e de nossas
dores quotidianas (que parecem devidas ao acaso), das perseguições que
sofremos da parte de quem nos oprime e da ingratidão daqueles com os quais
nos preocupamos a cada dia, Deus faz emergir uma dulcíssima cruz, que traz
para nós a semente da vida eterna, uma cruz que possui o doce sabor de
Cristo, à semelhança de sua cruz gloriosa.
«Perdoa-lhes»
Cristo aceitou o cálice que lhe foi trazido pela mão do Pai com toda a
infâmia, o opróbrio, a desonra e o sofrimento até a morte, de que estava
cheio. Aceitou-o como se fosse amor, amor absoluto, livre de qualquer dúvida
ou lamento, de qualquer reprovação ou gemido. .Desta aceitação não existe
prova mais eloqüente do que as palavras de Cristo: Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem (Lc 23,34). Jesus pronunciou-as na última hora, quando
a dor tinha se tornado extrema e o opróbrio tinha atingido o cume,
imediatamente antes de ele morrer.
Se os olhos de Cristo não permanecessem fixos na mão do Pai que segurava o
cálice do sofrimento e da morte, Cristo não poderia fazer outra coisa senão
ver as dores que o circundavam, a louca hostilidade, o desprezo e a alegria
malévola, a extrema opressão, toda a loucura com que o diabo incitou os
chefes, os anciãos do povo e o discípulo traidor.
Assim, o mandamento que Cristo nos deu para que em nossas orações pedíssemos
o perdão para aqueles que pecaram contra nós, não se apóia no vazio, nem é
semelhante às ordens da lei, na realidade incapazes de redimir ou garantir a
salvação. Pelo contrário, o mandamento de Cristo, fundamentado na obediência
ao amor de Deus, amadurece no horizonte impressionante da cruz, daquela cruz
que ele nos mandou carregar no seguimento e na imitação dele.
Por isso, quem decidiu carregar a cruz de Cristo deve antes de tudo evitar
cair no engano daquelas mãos grosseiras que crucificaram as suas esperanças
e os seus sentimentos. Tampouco deve deixar-se desorientar pela malvadeza
daqueles que lhe estão preparando uma emboscada, ou pelas intrigas do
Maligno. Apenas deve ter os olhos fixos na mão amorosa e compassiva que lhe
colocou às costas o jugo da cruz - juntamente com todos os instrumentos que
acompanharam a crucifixão de Cristo -, considerando-o como uma parte da
herança que lhe foi destinada, estabelecida nos mínimos detalhes e de acordo
com o decreto fixado pelo amor de Deus, que a tudo mede com o metro da
glória de Cristo. Isso significa que, por mais pesada que possa ser a nossa
cruz e por mais que o inimigo possa avançar (com a cumplicidade dos agentes
de iniqüidade) para torná-la pesada, de qualquer modo, o fardo colocado
sobre nossas frágeis costas, apesar disso, a mão divina, por sua vez, mede
também a porção que nos é reservada no peso correspondente de glória na cruz
de Cristo. Isso acontece de tal modo que, se - mesmo por um instante - fosse
tirado o véu que nos cobre os olhos e que o inimigo tece contra nós em
momentos deste gênero, a ainda junto a isso fossem tiradas a fraqueza da
alma, o nojo e o cansaço dos nervos, imediatamente compreenderemos que o
leve peso desta cruz, unido à nossa leve e momentânea aflição, na realidade
criou, como atesta o Espírito, um eterno peso de glória, colocado diante de
nós nos céus e visível ao nosso espírito exatamente no profundo do coração.
É esta verdade que torna realmente mais fácil perdoar os outros de todo o
coração; mais ainda, permite-nos ir bem além, até chegar à oração e ao amor
por todos aqueles que pecaram contra nós e nos fizeram mal, qualquer que
seja este mal ou ofensa, fosse mesmo a morte.
A vida eterna, com todos os seus esplendores e sua glória, está escondida no
mistério da suave, pequena cruz, que o Senhor colocou em nossas costas!
A
hostilidade é inevitável
Apenas surge o extraordinário poder de Cristo e se manifestam seus milagres
e, por toda parte, se difundiram suas ações e obras que tanto chamaram a
atenção pelo seu esplendor, imediatamente os sumos sacerdotes, os escribas,
os fariseus e quantos se serviam da religião para conseguir com o que viver,
passaram a levantar suspeitas em relação a ele, depois a atacá-lo e,
sucessivamente, fazê-lo cair em suspeita de erro nas palavras e ações. No
fim, nada mais lhes restava do que conspirar em segredo, tramando com muita
pressa para eliminar esse estranho, caso não quisessem se arriscar a perder
o prestígio e ver aumentar a indiferença com relação a si, como o próprio
sumo sacerdote declarou. Deve ser absolutamente claro aos nossos olhos que a
causa direta de sua tomada de posição contra Cristo, da resistência que
culminou na crucifixão, pode ser resumida numa frase: o fulgurante sucesso
de Cristo, seu sucesso em elevar o ânimo das pessoas e sua compreensão da
lei, em infundir alegria nas pessoas homens em geral e nos pecadores em
particular, no marginalizado, humilhado, rejeitado, afastado, no doente
atingido por uma doença sem esperanças e naqueles possuídos por poderes
diabólicos.
O sucesso de Cristo, seu amor, sua compaixão e sua mansidão foram a causa de
todos os sofrimentos suportados e da crucifixão: isto do ponto de vista do
mundo. Pelo que se refere a Deus Pai, é verdadeiro exatamente o contrário:
na cruz, o plano do Pai e o consentimento plenamente obediente e alegre do
Filho se revelaram salvação para o mundo: deste modo, quem crê em Cristo e
na sua paixão, não morrerá. A cruz é a nova arca que transporta toda espécie
de viventes; ainda hoje ela atravessa o dilúvio do mundo e os terríveis
horrores de morte, até levar a salvo seus passageiros ao porto celeste, o
mundo da paz eterna.
A mesma hostilidade manifestada pelas potências das trevas e de seu príncipe
nos confrontos do Cristo Salvador ainda permanece, juntamente com o desprezo
daqueles que o crucificaram, sacerdotes ou anciãos, levados por motivos de
interesse pessoal ou por seu fanatismo cego. Esta maldade, esta loucura e
este cego fanatismo encontram ainda um alvo em todos aqueles que abraçam o
testemunho e o seguimento de Cristo na própria vida.
O
sofrimento é o nosso caminho rumo à glória
Bem-aventurados os aflitos
porque serão consolados.
Bem-aventurados aqueles que estão crucificados,
porque serão transfigurados.
Bem-aventurados aqueles
que estão completamente abandonados,
porque reinarão.
Bem-aventurados aqueles que têm fome
e sede da justiça,
porque serão saciados.
Todos os seus sofrimentos serão esquecidos e suas lágrimas enxugadas: em seu
lugar uma luz indicará os horrores suportados e o mistério da glória que
deles nasceu. A grandeza da força humana do ânimo será revelada juntamente
com o poder das ações misericordiosas de Deus, pois o sofrimento aparecerá
pequeno e insignificante em comparação com a glória que dele deriva. Cada um
de nós verá que o sofrimento era uma cilada sacra preparada por Deus para
nos prender e conduzir-nos à glória: suportar o sofrimento, de fato,
aproxima-nos mais de Deus do que os atos de culto.
Um santo narra que, em visão, viu um grupo de mártires resplandecentes de
glória mais do que os anjos que apareceram junto com eles. Coroas de flores
vermelhas ornamentavam o pescoço daqueles que tinham sido decapitados:
dispostas exatamente no lugar em que a espada os tinha atingido, elas
resplandeciam e brilhavam com um esplendor maior do que qualquer outra luz
na visão.
Para Cristo, o mistério da cruz é o mistério de sua glória. O oprimente
sofrimento que o Senhor suportou, o tormento interior diante da injustiça e
da aberração de seu processo, o abandono de seus discípulos, a traição de
Judas e a certeza de que os sumos sacerdotes tinham-se colocado de acordo
com um de seus discípulos para avaliar sua vida em apenas trinta moedas de
prata, tudo isso era um caminho através do qual Cristo pôde abandonar o
mundo das vaidades passageiras para entrar na glória do Pai. E o homem, em
todo tempo e lugar, deve percorrer o mesmo caminho. A cruz e seu enorme
sofrimento não podem ser comparados com a glória deles derivada. A cruz não
foi um acaso na vida do Senhor: ele nasceu para a cruz: Foi para isso que
cheguei a essa hora (Jo 12,27). O homem nasceu para o sofrimento e o
sofrimento nasceu para o homem. Mas, ao mesmo tempo, a cruz não foi um peso
irrevogável imposto ao Senhor: suas próprias palavras nos fazem entendê-lo -
e nós estamos seguros disso em consideração de sua santidade e divindade.
Ele próprio fez a cruz se tornar um acontecimento irrevogável para sua vida:
Por acaso não devo beber o cálice que o Pai me deu? (Jo 18,11) - para
condividir conosco a inevitabilidade dos sofrimentos. Deus manifestou-se a
si mesmo, na pessoa de Cristo seu Filho, como alguém obrigado a sofrer, a
ponto de tornar o sofrimento aceito por obrigação igual ao sofrimento
voluntariamente escolhido, de modo que nenhuma pessoa no mundo fosse privado
da misericórdia de Deus e de modo que a cruz pudesse ser dilatada até a
incluir todos aqueles que sofrem injustamente.
A realidade da dor é uma grande pedra de tropeço para a mente humana, que
não pode aceitá-la como um meio para adquirir algo de bom.
Mas, se entendemos que a cruz é a maior manifestação de Deus nas realidades
visíveis, porque nela Deus foi transfigurado pelo homem (mais do que no
monte Tabor) e que a cruz é o sofrimento em sua maior, mais opressiva e
injusta forma, então devemos também perceber que a cruz é, por assim dizer,
o animal de carga em que montou o Deus Onipotente para descer do lugar de
sua morada, onde estava escondido desde a eternidade, e vir a nós para
tomar-nos pela mão. Do ponto de vista físico, o sofrimento representa um
obstáculo negativo e coercitivo mas, em sua essência espiritual, é
incomparável movimento!
O homem permanece numa situação espiritual acomodada, incapaz de avançar no
seu retorno a Deus com Cristo enquanto não carrega sua própria cruz. O
sofrimento leva o homem ao interior do mistério da cruz, de modo que ele não
permanece mais como um morto, mas é conduzido a Cristo, guiado e arrastado
de sofrimento em sofrimento até atingir o Pai, apoiando-se à cruz, e sobre a
cruz nós o seguimos para retornar ao Pai.
Cristo disse: Sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5). Falou assim não porque
tiranicamente tinha a intenção de humilhar a nossa vontade, nem porque nós
sejamos incapazes de atingir o conhecimento; de fato, ele nos ensinou tudo
aquilo que temos necessidade de conhecer. Disse isso porque somente ele,
como Filho, tem em si mesmo o poder de dirigir-se a Deus Pai. Cristo inclui
em si o poder de dois movimentos: o movimento de Deus em direção a nós e o
nosso movimento em direção ao Pai. O primeiro é um movimento natural e
essencial, cujo fundamento se encontra no mistério do amor de Deus pela sua
criação. O segundo é adquirido através da cruz, através do sofrimento
sacrifical preparado para sustentar a humanidade privada de vida e fazê-la
reerguer-se porque ele é o Filho unigênito de Deus, consubstancial ao Pai e
voltado para o Pai.
Cristo nos plenificou do mistério destes dois poderes: o poder do amor e o
poder da cruz, do sofrimento. Quando acolhemos estes dois poderes, Cristo
age em nós misticamente, de modo que podemos progredir por ele e com ele até
chegar ao Pai - neste ponto, graças a estes dois poderes e em Cristo, se
realiza o grande mistério da união com Deus.
Em Cristo, antes da encarnação e da cruz, o poder de ir ao Pai era natural,
mas para levar a humanidade e conduzi-la até o Pai - a humanidade que estava
morta - além de assumir a carne e tornar-se homem - ele teve de submeter-se
ao sofrimento sacrifical, de modo a levar-nos até a presença do Pai. Deste
modo Cristo, através da cruz, conquistou para nós um poder em vista do nosso
bem, o que significa o poder de levar ao Pai a humanidade pecadora. Era
justo que aquele, pelo qual e do qual existem todas as coisas, ao levar
muitos filhos à glória tornasse perfeito, mediante o sofrimento, aquele que
abriu a estrada de sua salvação (Hb 2,10).
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen. |